segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O mártir sofredor

I

A triste, deplorável, mísera condição humana. O que dizer do homem? O que dizer da vida? O que diremos sobre tudo isso? Como conseguir suportar esta loucura sem mentir e enganar a si mesmo? Como somos capazes de prosseguir em nossa marcha rumo ao abismo, ao vazio, com tantos obstáculos pelo caminho? O que nos impulsiona a continuar, mesmo quando tudo vai mal? Como explicar essa eterna luta por nada?

Desde eras muitos antigas, há séculos, a humanidade vêm tentando entender sua existência, sua condição e propósito neste universo. Muitas e várias explicações foram dadas, cada uma à seu modo tentando dar um porque a várias perguntas, ou pelo menos respostas que aparentemente preencham tais lacunas.

Muitas questões têm intrigado o homem, como o mal, a dor, o sofrimento, a morte, a vida após a morte, a imortalidade da alma, mas acima de tudo: a sua própria existência. Mais importante do que descobrir sua origem, sua natureza, é entender sua finalidade. Qual o sentido da vida?

Muitas respostas à essa intrigante e fundamental pergunta têm sido dadas, partindo de diferentes perspectivas. Religiosos, pensadores, cientistas fazem o que podem para dar uma explicação plausível. Todos partem de um princípio: já que não se pode negar o absurdo da vida, deve haver um pretexto razoável para isso. Isto é, se a vida não possui nenhuma justificativa, deve-se encontrar uma boa desculpa para ela.

Uma vez que ninguém pode negar o sofrimento que existe neste mundo, cabe procurar uma razão, uma lógica pela qual valha a pena viver apesar do sofrimento.

II

O homem contempla a vastidão do universo enquanto se depara com a sua própria finitude. Vê o sol, a lua, as estrelas e não pode alcançá-los. Quer voar, mas não têm asas. Ele é grande demais para ser pequeno neste mundo e pequeno demais para ser grande neste universo infinito. É simplesmente mais uma das muitas criações do Criador, porém a mais complexa. É um ser intermediário entre os animais e os anjos, um elo entre o físico e o espiritual.

É também um poço de contradições. Apesar de suas limitações, têm em si mesmo uma poderosa arma para manter-se de pé, e superar a todos os obstáculos que se lhe apresentam: a inteligência. Através dela, pode construir arranhas- céus, enviar satélites pro espaço, desfrutar dos avanços tecnológicos, criar e apreciar a arte. Contudo, é doloroso ver que a despeito de tudo o que fizermos ou quão longe tivermos ido, ainda assim terminaremos como os animais, as bestas, os seres irracionais que subjugamos e nos cremos moralmente superiores.

Não é fácil aceitar que mesmo que cheguemos a pisar na lua, voar como pássaros, nada nos impedirá de um dia estarmos a sete palmos debaixo da terra. Um médico que encontra a cura para todas as enfermidades menos para a sua própria doença, com razão se sentirá frustrado.

O homem pode passear em volta da órbita terrestre, conquistar reinos, fundar impérios, escrever seu nome na história, mas jamais poderá ultrapassar os limites da sua própria natureza, por mais que queira muda-lá, ou principalmente negá-la.

III

Além da inteligência, há outro fator que nos diferencia dos demais seres vivos neste planeta ou talvez no universo: a consciência. O homem não apenas existe, como também sabe que existe. Diferentemente dos animais que são movidos, guiados e sobrevivem totalmente através de instintos, o ser humano têm plena consciência de sua existência e condição no mundo.

Ele conhece suas limitações, suas capacidades, seu potencial e fraqueza, mas principalmente, sabe de seu destino. Ele é o único que sabe de sua própria mortalidade, está ciente disso. É um fato com o qual está obrigado a conviver, quer goste quer não.

Isso a primeira vista pode parecer uma coisa boa, um trunfo, pois a melhor forma de se combater um inimigo é conhecendo-o. Tal seria o caso se o inimigo em questão não fosse invencível!

Quando se trata da morte não há remédio ou escapatória. O homem têm diante de si uma sentença irrevogável, uma pena que terá que cumprir. Um destino do qual não poderá fugir, apenas adiar, retardar o máximo possível. 
E o fato de saber disso é o que mais dói, aflige e perturba o coração humano.

IV

A consciência é para o homem uma faca de dois gumes: pode trazer-lhe alegria ou lhe proporcionar a mais profunda tristeza. Saber de sua condição no mundo e ter ciência de suas limitações pode ajudá-lo a buscar soluções para seus problemas, como também pode fazê-lo se sentir o mais miserável de todos os seres, justamente por conhecê-los e não poder mudá-los. Isto é, a consciência nos permite saber quem somos e quão miseráveis somos. A consciência que ilumina também mata!

Poderíamos indagar-nos se realmente existe alguma vantagem em sermos inteligentes, racionais e termos consciência de nossa própria existência. Seria isso uma vantagem sobre os animais? Um motivo para nossa felicidade ou a maior causa de nossa desgraça? Que lucro temos em conhecer nossas misérias se não podemos mudá-las?

Quando o homem se dá conta da realidade em que vive, das limitações que possui e das mazelas presentes no mundo, a sensação que têm é de angústia. Ter um problema que é incapaz de resolver, ver coisas ruins acontecerem consigo e seus semelhantes sem poder impedi-las ou amenizá-las, é como estar de mãos atadas.

O homem seria então o louco que sabe de sua própria loucura, um doente que sabe da gravidade de sua doença. Porém, para manter-se são, necessita de alguma forma crer que é saudável. O escravo necessita crer que é livre, pois ainda não aprendeu a suportar as pesadas correntes que o prendem.

V

Todas as ações humanas constituem-se portanto em uma forma de auto-afirmação. O homem precisa crer que é alguma coisa para poder suportar sua estadia neste mundo tão caótico e instável. Quando não possui forças suficientes para acreditar em si mesmo, deve crer em algo superior que possa ajudá-lo a sentir-se protegido durante sua jornada.

Uma vez que não se pode mudar a realidade do mundo em que vive, deve buscar uma forma de afirmar-se nele e assim sentir-se forte. Isso é, ter um título, diploma, posses, são formas de mostrar-se forte neste ambiente selvagem, como um predador que carrega a presa em meio aos dentes, dando claramente sinal de força à seus semelhantes, recebendo o respeito e a admiração dos mesmos.

O homem precisa se auto-afirmar para poder negar suas misérias. Cada gesto de poder, cada ordem de comando, cada demonstração de força, são simplesmente formas de negação, mecanismos de defesa que a mente humana encontra para não ter de admitir, reconhecer suas contradições e debilidade.

Isso nos lembra o texto bíblico de Gênesis 11, o relato da Torre de Babel. Deus frustrou os intentos daqueles homens audaciosos que queriam construir uma torre cuja ponta tocasse os céus. E por que tinham tal pretensão? Por que desejavam que seus nomes fossem lembrados e não fossem espalhados pela face da terra. Ainda hoje o ser humano quer tocar o céu, colonizar Marte, etc, apenas para não aceitar que seu nome será esquecido e espalhado por sobre a terra, engolido pelo tempo e a história.

VI

Analisemos agora a condição humana. Vejamos pois o absurdo que é o homem, ou mais precisamente a vida humana.
A vida consiste em resolver problemas. É simplesmente "uma luta pela existência com a certeza de ser vencido", como disse um célebre pensador alemão. Quase não há espaço para a diversão, a alegria e o lazer. Todo homem tem que trabalhar para viver, mesmo que viva para trabalhar. É necessário obter o sustento com muito suor, ainda que isso só sirva para prolongar o sofrimento que não há a menor pressa que acabe.

O homem tem de lutar pela vida, ainda que não a tenha pedido e desconheça seu significado. É preciso matar um leão por dia, mesmo sabendo que por mais leões que se mate, um dia o caçador será caçado, não importando o quanto conquistou até lá.

O começo de nossa existência é tão abrupto e repentino quanto nosso fim. Sem mais nem menos viemos parar aqui, e querendo ou não teremos que deixar este mundo. Não fomos consultados se gostaríamos de estar aqui. E agora que estamos, gostando ou não da idéia, teremos que ir embora. Mas e se eu gostar de viver? Não importa, morrerei da mesma forma.

É este período compreendido entre o nascimento e a morte, o grande problema que temos. Esse intervalo de tempo que denominamos "vida", a causa de nossas inquietações e dor de cabeça. É difícil para o homem entender que precisa sofrer numa curta vida que recebeu sem jamais ter requerido, ou quando feliz e satisfeito, ter que morrer. Esse dilema não têm solução aparente. Todas as soluções que são apresentadas são crenças, idéias, teorias, especulações, nada que consiga mudar nossa triste realidade: viemos pra esse mundo sem uma razão aparente, por um breve período sorrimos, choramos, amamos, sofremos, e por fim estamos fadados a desaparecer.

Sabendo que tudo pode terminar a qualquer momento, tão repentinamente como teve início, só nos resta tentar aproveitar o pouco tempo que temos, seja lutando por uma vida melhor depois desta ou fazendo o melhor para ser feliz (se possível) nesta vida, sem esperar nada no além, dando-se por satisfeito com esta existência absurda e contraditória, transformando-a em um tesouro e dando-lhe a cada dia um novo valor.

VII

Todos os nossos esforços são feitos na busca pelo prazer. Ou na procura por alívio. Tal como animais, somos guiados por nossos instintos, numa busca incessante por satisfazer nossas necessidades. Existem necessidades reais e básicas e outras supérfluas e descartáveis. Seja como for, somos dominadas por ambas, sendo as básicas as mais urgentes e que não podem esperar.

A maior parte de nosso tempo passamos empenhados nisto: procurando suprir nossas necessidades, tentando encontrar alívio para nossas dores e buscando prazer para nos sentirmos bem.

O problema que temos aqui é quando surgem barreiras que podem nos impedir de alcançar aquilo que queremos ou precisamos, sendo essas difíceis de superar ou contornar. É aí onde nasce a frustração. O desejo não cumprido, a necessidade não suprida decepciona e entristece. A sensação de impotência vêm, demonstrando que querer não é poder, e que às vezes até mesmo o básico, o essencial nos pode ser negado.

Estando cientes disso, possivelmente poderemos reagir de várias formas: nos sentiremos injustiçados e ficaremos paralisados diante dos nãos, as portas fechadas que recebemos. Tentaremos lutar até vencer, dando a volta por cima. Ou talvez decidamos não fazer nada, porquê cremos que não há nada que possa ser feito e se houver, não vale a pena o esforço.

VIII

O objetivo máximo da humanidade têm sido a busca pela felicidade. Mas levando em consideração as contradições, injustiças, instabilidade do mundo em que vivemos, é difícil acreditar que seja possível encontrá-la. Pelo menos não neste mundo, não neste sistema.

Há coisas que não dependem apenas de nós. Estão além de nossas forças. Há sempre um choque entre o desejo e a possibilidade deste se concretizar. Nesse interím temos os sonhos, a força propulsora que nos mantém vivos. Não importa se eles são factivéis ou não, nós precisamos deles. São cordas nas quais nos agarramos para não cairmos no abismo. Vivemos de sonhos pra que a realidade não nos mate!

O que antes foi dito sobre os obstáculos que se interpõe entre nossas metas e realizações, causando a inimiga máxima de nossa felicidade, a frustração, torna-se um grande problema quando esta é recorrente. Se a frustração de um sujeito se deve a fatores de fato fortes, verdadeiras barreiras que este possui e não dispõe de recursos para ultrapassar, sua queixa será justa.

Um escravo, por mais que deseje, dificilmente saberá o que é ser livre. Ele nasceu assim, viverá assim, e muito provavelmente morrerá assim. Para ele não basta apenas desejar ser livre. Se trata de ter nascido livre, ou talvez por graça e providência divina, ganhar a liberdade. Por si mesmo, ele não pode conquistá-la. O que lhe resta é sonhar ou resignadamente aceitar sua condição, uma vez que não pode mudá-la.

Essa é a mesma angústia que terá cada pessoa quando desejar algo e não puder obtê-lo, por estar amarrado, de mãos atadas, vítima da vida e refém das circunstâncias. Tal será a sensação de impotência que virá, fazendo-nos recordar o quão limitados somos ou a vida nos leva a ser.

IX

Há pois três grandes problemas na condição humana: a consciência que nos permite saber quem somos e quão miseráveis somos. O choque entre querer e poder, e as instabilidades e incertezas da vida. Poderíamos considerar a certeza da morte como um quarto problema, mas a existência de suicidas nos mostra que nem todos a vêem assim...Ela de fato poderá ser um castigo para o feliz, alegre e satisfeito como também um bálsamo, um alívio para o desesperado. Tudo depende do ponto de vista.

A consciência faz com que o homem se sinta refém, prisioneiro de suas próprias limitações. Conhecer sua condição é o equivalente a conhecer suas próprias misérias. Boa parte do sofrimento humano provêm daí. O homem sabe de suas limitações mas não pode mudá-las. É como um refém que vê seus entes queridos sendo rendidos, golpeados, roubados, sequestrados, sem poder fazer nada para impedir por estar na mesma situação: de mãos atadas. Ver a dor de nossos semelhantes e não poder ajudá-los é realmente frustrante.

O choque entre querer e poder é inegável. Quando temos um sonho ou um simples desejo e estes não se podem concretizar por causa da interferência de fatores externos, nossas limitações são trazidas à tona novamente. O homem percebe que não têm o mundo a seus pés, ao invés disso, o mundo o têm sob seu domínio. Ele não é livre para usufruir de plena liberdade como gostaria de acreditar. Muitos fatores podem intervir neste processo, favorecendo-o ou prejudicando. O que cabe ao homem é administrar os recursos que possui, lutar com as armas que têm, ser livre até onde sua liberdade o permite ser.

A vida que temos e o mundo em que vivemos são instáveis e imprevisíveis. Nosso futuro é tão incerto como o dia de amanhã: não sabemos o que esperar dele, e ainda assim fazemos planos e traçamos metas que esperamos cumprir. Não levamos em conta que eventuais obstáculos poderão surgir e precisaremos enfrentá-los. E quando isso acontece, somos surpreendidos e não sabemos o que fazer. Isso mostra que o homem não possui total controle e autonomia sobre a própria vida, e muitas vezes o que pode fazer é adaptar-se, conformar-se com as circunstâncias.

Isto fere frontalmente o ego e orgulho humano, demostrando mais uma vez sua fraqueza e impotência perante situações cotidianas que atrapalham desde seus planos e projetos mais simples até os mais complexos.

X

O mais triste de tudo é que embora sejamos iguais em nossas fraquezas, não o somos em nossas possibilidades. Isto é, o fim é o mesmo para todos, mas as condições não são as mesmas para todas as pessoas. É uma grande mentira dizer que todos têm as mesmas chances, as mesmas oportunidades, as mesmas possibilidades. Somos iguais em nossos deveres, mas não em nossos direitos. Temos as mesmas obrigações, mas nem sempre as mesmas opções.

De fato, muitas vezes as chances de êxito, alegria, bem-estar, qualidade de vida de uma pessoa são determinadas pelas circunstâncias em que se encontra. Tais condições são impostas pelo contexto histórico, cultural, social, familiar, econômico do meio em que vive. São estes fatores que desde o nascimento podem determinar muito positiva ou negativamente nas chances de sucesso, realização e felicidade de alguém.

Logo, é uma ironia afirmar que o sol brilha para todos, que basta acreditar que dias melhores virão, que tão somente devemos lutar, nos esforçar...Que a felicidade é só uma questão de escolha...Será? Isto não parece condizente com a realidade. É tão distante da verdade que podemos dizer que nem mesmo os que pregam tal coisa crêem realmente nela...Só a dizem para se sentir bem e dar alento aos demais.

A forma como uma formiga vê a vida não é igual a forma que a vê um elefante. Se no reino animal é assim, há uma cadeia alimentar e uma hierarquia, presas e predadores, no humano não é muito diferente. Cada um terá que viver de acordo com suas condições, sendo estas impostas pela vida ou por outras pessoas.

O que dizer de um cego de nascença? Ele nunca terá o prazer de ver a luz. Um surdo? Mudo? Essas pessoas foram privadas do básico, de sua saúde. Não podemos exigir que elas vejam a vida com bons olhos, se a sorte não lhes foi nem um pouco favorável...O que diremos das crianças exploradas sexualmente? Das que passam fome? Ou das que são escravizadas, não tendo sequer direito a uma infância?

Não se pode dizer que tudo de ruim que acontece nas nossas vidas se deve a uma causa exterior, um fator externo. É evidente que muitos de nossos fracassos, decepções, frustrações, etc, são resultados de escolhas equivocadas, ações e omissões. Se plantamos batatas, não colheremos feijões! Mas é inegável que a vida nem sempre é justa, que o mundo é bastante cruel, tanto com os que merecem e os que não merecem. Às vezes pagamos por crimes que não cometemos, sofremos as consequências de erros de outros.

É lamentável saber que se por um lado todos vamos morrer, teremos o mesmo destino, nem todos terão uma vida feliz e digna, alguns morrerão sem conhecer um segundo de felicidade, tendo tido só desgostos e dissabores.

XI

O ciclo natural da vida faz com que pessoas diferentes façam sempre as mesmas coisas. Como disse o pregador em Eclesiastes: "Não há nada de novo debaixo do sol". As pessoas que viveram há 200 anos atrás tinham as mesmas ambições que temos hoje, e as que viverem daqui a 100 anos farão as mesmas coisas que estamos fazendo agora. As virtudes, os vícios, os sonhos e projetos são os mesmos, só variando o cenário histórico.

E que ciclo natural é este? É simplesmente a luta pela sobrevivência, a afirmação do ego, a perpetuação da espécie...Como em um círculo vicioso, pessoas nascem, vivem e morrem, realizando sempre as mesmas atividades, por vezes cansativas e patéticas...

São poucos os que ousam quebrar este ciclo, rompendo com as "tradições tribais" e assumindo uma nova postura, uma cosmovisão nova, uma personalidade própria...Estes são os "loucos" que nos causam tanta estranheza por serem diferentes em um mundo tão igual.

Somos como peças de uma máquina, criadas para executar sempre a mesma tarefa, estando cientes disso ou não. Na verdade precisamos executá-las, pois se não o fizermos, nos sentiremos mal, notaremos que não estamos funcionando como deveríamos...Ao romper-se o "ciclo natural da vida", sentimentos de frustração, decepção e tristeza virão nos afligir, e um olhar de espanto, descrença e incompreensão será lançado pelos demais...

Cada peça deve funcionar perfeitamente bem neste complexo, enfadonho e repetitivo sistema que nos rege...Nenhum músico deve destoar do tom prejudicando assim toda a orquestra.

Nossas funções nesta vida consistem simplesmente em realizar tarefas básicas como estudar, trabalhar, namorar, casar-se, ter filhos, aposentar-se, e num domingo de sol almoçar com a família tendo a prazerosa sensação de dever cumprido...E assim, cansados porém satisfeitos, nos deitaremos no sofá e enquanto assistimos televisão daremos o último suspiro...

Devemos executar com precisão e mecanicamente nossas tarefas sem sequer nos perguntarmos o porquê as executamos, para quê as executamos, e para quem as executamos.

XII

O rompimento com a harmonia natural do ciclo da vida lança o homem num estado de profunda angústia, frustração, crise de identidade. Saber que deve conquistar aquilo que outros conquistaram é para ele um duro desafio que lhe foi imposto, ou que o mesmo se impôs. Sim, podemos dizer que há imposições e auto-imposições. Existem padrões de beleza, felicidade, comportamento que são tidos como desejáveis, sendo seu oposto o equivalente exato ao "fracasso". Tão odiado, julgado, temido, é como uma peste da qual todos fogem.

Todos nós crescemos tendo como referência tais valores. E tendemos a nos desvalorizar quando não os encontramos em nós mesmos. O que acontece porém é que não percebemos que estes valores são simplesmente conceitos, definições, juízos. O que deveríamos nos perguntar é se teríamos essa mesma visão se não a tivéssemos aprendido antes. Temos que aprender a diferenciar o que é nosso do que é herança.

Uma mulher de 50 anos que não se casou nem teve filhos não é uma fracassada. Ninguém deveria ser obrigado a se casar e ter filhos, mas como é o que todos fazem, vemos com desconfiança àqueles que não fazem isso, seja por escolha ou não. Uma pessoa que não têm amigos não é uma pessoa estranha, pode ser simplesmente alguém que se acostumou a viver só, por não ver sentido no convívio social. Ou talvez tenha razões para preferir uma vida solitária, por não ter boas lembranças de quando quis socializar-se.

O cabelo crespo não é inferior ao liso. Só pensamos assim porque estamos habituados a ver o segundo com mais frequência nos comerciais de shampoo da TV do que o primeiro. Boa parte de nossos conceitos, valores e padrões foram apreendidos de nossos pais, amigos, da sociedade em que fomos criados. E nos custa muito aceitar isto e criar novos valores, uma nova forma de enxergar o mundo.

Mais cedo ou mais tarde teremos que compreender que nosso ritmo não é o mesmo dos outros, que nem sempre conquistaremos tudo o que o outro conquistou e que se o fizermos, não necessariamente será na mesma idade. Precisamos entender que nem todos têm a mesma sorte, e que a vida não deveria ser uma competição de quem faz mais em menos tempo.

XIII

Mesmo tendo em conta que cada um têm seu próprio tempo, que ninguém é igual a ninguém apesar de possuírem objetivos semelhantes, não é fácil evitar a frustração quando ela vem. Sem dúvida é uma reação natural do ser humano, uma resposta inconsciente que damos toda vez que não conseguimos aquilo que almejamos. Então, o que podemos fazer para evitá-la, sendo ela algo tão comum e recorrente? A resposta é simples: tentar desejar o mínimo possível, como bem observaram alguns notáveis pensadores.

É impossível aniquilar por completo a vontade do homem por ser este um ser consciente. Ele têm ciência de suas necessidades, e não estará satisfeito até supri-las.

Mas ele pode evitar desejar coisas que não lhe são realmente necessárias e que almeja simplesmente para competir com os demais. Ele deve dar-se por contente com o que têm, não desejar ter mais para estar contente. Só assim poderá sofrer menos, já que é inevitável sofrer.

XIV

O problema com a teoria anterior é que é difícil aplicá-la na prática. Falar é fácil, fazer não. Isto ocorre porque todos buscam a felicidade como forma de aliviar a existência, ao invés de entender que em um mundo tão incerto e instável é muito improvável que possamos encontrá-la. O desejo de Auto-afirmação leva também a outro problema: a comparação com os demais. Quando alguém vê o outro sendo feliz e desfrutando de uma vida invejável, nasce o complexo de inferioridade. O que é de certa forma compreensível, já que ninguém quer ser apenas expectador da felicidade alheia e mero coadjuvante da própria vida. O anseio por protagonismo é o que nos leva a sofrer.

A única solução para este dilema seria aceitar que querer não é poder. Que nem sempre as portas estarão abertas ou que todos estarão sorrindo para nós. A busca por soluções para problemas demasiado complexos nos quais pouco ou nada pode ser feito, gera desespero. Não deveria ser assim. Às vezes a saída é aceitar que não têm saída.

Quando o homem finalmente entender e se convencer de que as coisas não são como ele gostaria que fossem, que não está no seu alcance mudá-las e que o melhor que pode fazer é "deixar pra lá," boa parte do sofrimento terá sido superado.

O caminho para a felicidade é desistir de ser feliz. Porque tentar estabelecer metas, planos, projetos, condições para ser feliz é justamente a maior causa de nossa infelicidade. Estaremos criando barreiras pro nosso próprio bem-estar e nos frustaremos ao ver que não podemos superá-las.

XV

Por tudo o que temos observado e analisado, é difícil responder ou afirmar sem hesitação qual é o sentido da vida. Ao que tudo indica, parece não haver nenhum. A vida, em si mesma, é totalmente desprovida de propósito e significado. É como ponteiros de um relógio, movimentando-se sempre sem nunca sair do lugar. Apesar de desempenhar um importante papel, tais ponteiros desconhecem por completo a finalidade da função que executam. Assim como nós, que vivemos sem saber o porquê. Fazemos o que fazemos sem saber porque fazemos ou para que fazemos. Executaremos nossa função até que as pilhas se acabem e nossos ponteiros parem exatamente aonde estiverem indicando, de acordo com o tempo contado.

Cada homem é parte de um todo infinito maior do que si, e é também um universo em particular. Ele deixa suas impressões no mundo ao mesmo tempo em que reflete as impressões que o mundo o deixou. Todo animal deixa sua pegada antes de desaparecer, até que esta também desapareça.

Ainda que sejamos diferentes, no fundo somos iguais. Possuímos as mesmas aspirações, embora não tenhamos as mesmas condições. Estamos todos no mesmo barco, com um destino em comum, viajando em classes diferentes.

XVI

O que melhor representa a condição humana é a tragédia. Em toda e qualquer arte, ela é a que mais se aproxima da realidade. Realidade esta que a todo custo queremos negar, mas nem por isso se torna menos real. Toda a angústia humana, finitude, injustiças, amores impossíveis, doenças, guerras, marginalização, estigma, preconceito, exclusão, rejeição, luto, morte, entre outras coisas, são temas expostos em grandes obras de arte que abordaram o "lado triste" da vida ao longo da história.

Usamos roupas para cobrirmos nossas vergonhas, mas não podemos mudar nossa natureza que é a nudez. Se nos esquecessêmos de nossas roupas ou deliberadamente decidissêmos não nos vestir, nos veríamos como realmente somos: nus. As vestimentas são portanto necessárias, ainda que não façam parte de nós.

Devemos pintar com cores irradiantes e vivas o mundo em que vivemos para não percebermos o quão escuro, cinzento ele é. Decoramos nossa casa para dar um aspecto melhor, porém, a simples presença de um belo quadro em uma parede é tão somente um adorno, não muda o fato de que uma parede é naturalmente vazia. Vemos a beleza que pintamos e nos esquecemos que sem os enfeites que colocamos nas coisas, elas são como são. Não queremos ver as coisas como são, porque não nos convém. Não sabemos se estamos prontos para isso, se seremos capazes de continuar vendo beleza quando todo adorno, maquiagem, enfeite, tiver sido retirado.

Precisamos nos sentir grandes para esquecermos de nossa pequenez. Um paciente em estado terminal não pode saber da gravidade de sua doença, para que viva feliz o pouco tempo que têm. Não podemos destruir as ilusões de ninguém, se vemos que estas fazem bem para aquele que as possui. É desumano despertar uma pessoa, tirá-la de seu descanso e inércia se não houver uma boa razão pra isso.

O homem pode negar um fato, mas não invalidá-lo. Pode embelezar aquilo que é feio, mas não torná-lo belo. Pode-se mudar a aparência, mas nunca a essência.

Todos os esforços humanos na procura pela felicidade são tentativas inúteis de não encarar os fatos. São mecanismos de defesa que criamos para não sucumbirmos ante o peso daquilo que está debaixo do nosso nariz. São mentiras que contamos a nós mesmos por não sermos capazes de suportar a verdade.

Quando o homem descobre a si mesmo, se vê refletido como realmente é, não têm pra onde fugir. O que deve fazer é saber como lidar com os fatos, visto que já não pode mais negá-los.

A vida é naturalmente triste. Toda dor, sofrimento, aflição, preocupação, carecem totalmente de uma razão que os justifique. Mas ainda assim tentamos nos convencer de que nada é em vão. Nascer, viver, sofrer e morrer...Qual a lógica disso? Porque temos que passar por tudo isto se um dia iremos sumir? Que proveito terá tanto esforço e empenho quando não estivermos mais aqui? A vida é uma eterna luta por nada.

Queremos crer que a nossa persistência possui um bom motivo, pois não gostamos da idéia de sofrer à toa.

XVII

Definir um sentido para a vida é uma tarefa difícil. Pode haver vários ou mesmo nenhum. Esta é uma questão muito particular, que cada pessoa deverá descobrir por si mesma. O que podemos constatar é a precariedade da condição humana. O ser humano tem que viver com suas limitações, seus medos, lutando para sobreviver em um mundo incerto, sonhando com a felicidade, enquanto resolve problemas e tenta encontrar alívio para suas dores. O que o move a continuar é a esperança. O náufrago sabe que pode não conseguir chegar até à praia, mas prefere morrer tentando.

A solução seria aprender com as plantas e animais. Por não terem consciência, eles não sofrem, pois ignoram sua condição e desconhecem suas limitações. Sendo porém isto impossível ao homem por ser este um ser racional, o que deve ocorrer é uma mudança de mentalidade. Isto é, precisamos aprender a nos dar por satisfeitos com o simples fato de existirmos! Viver sem sonhar nem esperar nada. Apenas viver. Ou existir.

Só assim será possível ao homem enfrentar o absurdo que é posto diante de seus olhos. Quando se tornar indiferente à própria dor e sofrimento (ainda que compassivo com a dos demais), o homem estará em equilíbrio. Mesmo que isso exija forças sobre-humanas para se preciso for, ver com naturalidade e frieza a própria ruína e infortúnio, tal resignação evitará o desespero e a frustração, pois aquele que aprendeu a não desejar não sofrerá com a ausência do que não desejou. Isto é, podemos desfrutar dos breves e transitórios momentos de felicidade que a vida nos proporciona, mas não devemos pautar nossa existência neles. Vivendo em um mundo tão estranho com um futuro incerto, não tendo a certeza de nada nem o controle de tudo, seria uma imprudência apegar-se à esses momentos.

A vida é como um fio que se pode romper a qualquer instante. Pensamos na velhice mas não sabemos se chegaremos até lá. Até mesmo nossa saúde pode debilitar-se, estando nós saudáveis em um dia e enfermos noutro. Nada é absoluto. Sabendo disto, seria sensato tentar aprender o desapego, a apatia e a resignação. Quanto maior o desejo, maior a frustração. Quanto maior a espera, maior a decepção.

O escravo que desistiu de ser livre sofre menos que aquele que ainda almeja a liberdade. Temos que estar preparados para tudo nesta vida, se não quisermos cair em desespero, pois nem sempre poderemos escrever nossa história como gostaríamos. Devemos, se preciso for, estar dispostos a ser um mártir sofredor, alguém cuja vida não é mais que dor e sofrimento, e que ainda assim suporta a tudo heroicamente, cumprindo sua sina, a despeito de sua infelicidade. Mesmo sem almejar nada, ele segue, sabendo que um dia tudo terá fim, ainda que isso pareça demorar.

O homem que aprendeu a viver sem grandes expectativas viverá sem grandes decepções. Fará bem a si.