quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Eternália

Encontrava-se deitado,
em seu leito amortecido,
o corpo reclinado
de dores abatido,
o coração entenebrecido. 

Sentiu-lhe percorrer um estupor mortal
que lhe gelou inteiramente. 
Era chegado o momento fatal - pensou,
e nada restava a fazer senão rezar com fé somente.

Eram as três da tarde, 
nessas horas suspensas e mortas, 
de preguiça o ar se invade. 
Horas extensas, como gigantes hortas.
{O tempo é uma planta carnívora que devora todo ser vivente}.

O pobre homem nada entendia e estando já demente,
viu-se flutuando - para onde não sabia - foi sendo levado para um lugar assombroso,
deveras tenebroso,
guiado apenas por uma voz que tudo lhe dizia.

"Estás aqui e daqui não sairás enquanto não vires tudo o que vou te mostrar,
não te assustes, de medo não morrerás, tu és forte, sei que vais suportar."

Ele virou-se assustado para ver quem lhe falava,
e nada viu.
Tentou correr, desesperado, mas não conseguiu. Onde estava?
A voz nada mais lhe disse, e um repentino clarão surgiu.

Era um fogo diferente, pois queimava e não era quente.
Quando dele se aproximava, calor não sentia, mas sua pele ardia e só bem depois dóia.

Em meios as chamas crepitantes, o homem ouviu gritos profundos, dilacerantes. 
Eram oriundos de escombros,
indefesos seres cheios de assombros esperavam o resgate que não chegava,
enquanto a sede e a fome cresciam 
e o desespero só aumentava. 

"O que pode ter provocado tamanha calamidade?", indagou. 
"Isto não é fruto de humana maldade, são pessoas que um terremoto soterrou".

A voz lhe respondeu, e em seguida na chama outro evento lhe mostrou: 
Soldados feridos em combate, agozinando. 
Sem ter quem os ajude,
esquecidos,
sem que a sorte mude 
ou a dor de vez os mate.

Alguns estavam mutilados, de outros ao pisar em uma mina, voaram pedaços por todos os lados. 
Jovens, belos e fortes pela morte foram levados, 
e só restaram capacetes sobre os crânios, 
esqueletos fardados!

Da cruel e tirana guerra se encheu de sangue o solo,
se embebedou a terra.
Pedia o filho à mãe colo,
quando sua casa viu ser invadida,
seu pai fora morto,
e sua mãe, como um troféu entre a tropa, 
fora repartida. 

O menino foi levado prisioneiro 
por vis homens armados,
obrigado a trabalhos forçados em território estrangeiro.

Nos mais cinzentos porões jazem amordaçadas pobres mulheres cativas, 
raptadas por cães.
Presas, em vão tentam fugir,
são ameaçadas, e o grito de socorro, abafado, ninguém consegue ouvir.

As cenas vão se passando, sucedem-se rapidamente, ele vai a tudo olhando,
pálido, de si próprio descrente.

Um homem aborda uma criança, lhe oferece doces, ela feliz aceita. 
Como é sórdido brincar com a esperança de um ser para depois descartá-lo!
É esta dos maus a receita.

Agora é tarde, para o mal já foi aberta a porta. 
Os familiares procuram a menina, 
até que o pior vem à tona:
Deixaram-na nua em um matagal, 
a criança é achada morta.

Com esta visão o homem vai a lona, é grande o mal,
não pode crer que seja verdade tamanha maldade, e à voz chega a dizer:
"Basta já, me cansei de tanta crueldade!"

Seu olhar uma lágrima esconde.
A voz nada responde.
O fogo segue crepitando, 
e as visões se formando. 

No meio de uma ilha deserta vê um homem indigente, 
fartando-se ávidamente. 
O pobre luta contra a morte certa, 
devorando o resto de seus companheiros, comendo carne de gente!

Era um imponente navio, 
havia muitos passageiros. 
Naufragou após uma tempestade,
na fúria do mar bravio,
só um sobreviveu - que fatalidade!
E para não sucumbir à fome insana,
sacia-se com seus iguais,
come carne humana!

Outro caso curioso, 
mas não menos digno da pena de um coração piedoso,
ocorreu em terra firme.
Uma doméstica situação, 
um fim pavoroso 
de um elaborado crime.

Andava Sebastião suspeitoso de que por sua esposa era traído. 
Contratou um detetive,
e após muito investigar, 
descobriu que seu temor era devido.
Buscou ocasião para ela e o amante flagrar,
não ia passar batido. 

O flagrante ocorreu, e ele furioso nos dois atirou.
O amante se feriu, 
sua mulher morreu, 
a polícia Sebastião prendeu, e o infeliz, com remorsos ficou.

Traição - esta maldita é antiga. 
Irmã da ambição, anda junto com a mentira
e é mãe da intriga. 
Por causa dela, o amor ódio vira,
o amigo em inimigo se transforma,
a pureza corrói 
e toda beleza deforma.

Oh! Incontáveis séculos de miséria e dor, cantando a morte exangue a sua melodia profana.
A história humana é escrita com lágrimas e sangue. 

Não há glória em construir palácios, fundar reinos ou impérios. 
Perto do fim, até os cômicos tornam-se sérios, 
e nada mais restará do que bustos esquálidos. 

Pálidos - oh, pálidos morreram todos aqueles que eu admirei.
Definharam sós,
abandonados no leito de morte, 
sonhadores viveram, 
mas ao menos mortos 
obtiveram a glória que eu sonhei!

Que é a vida senão a sorte
ou um hediondo acaso?
Para quê nasces ó homem, 
senão para chorar, 
por um curto prazo, 
e depois para as trevas retornar?

Há estradas desertas
que ocultam maldades encobertas.
Nessas paragens isoladas, 
mulheres são violadas, 
por homens que não temem às leis
nem às chamas eternas,
e só querem saciar
o demônio que todos temos entre as pernas.

Deste ardil da natureza,
deveras sucede uma proeza.
A malícia cobre-se com sedoso pano, 
passados nove meses, 
ensangüentado e choroso nasce um ser humano.

Há nesses regaços
um forte odor 
de tédio e cansaço, 
como se a história, farta de si, quisesse se reinventar, 
para não continuar 
a perpetuamente se repetir.

Ah! Quanto sangue essa terra bebeu, 
quantos corpos esse solo encobriu! 
Mil vezes acorrentado seja Prometeu 
e Pandora pela caixa que louca abriu!

"Se corres ó homem, a dor vai te seguir. 
És consciente e da tua consciência nunca poderás fugir!
Tudo o que vês te parece perverso, 
mas esta é tua vida, 
o teu universo. 
Porque te impressionas e tuas crenças abandonas?"

A voz calou-se e terminaram as visões medonhas.
O fogo cessou de crepitar, 
o homem pôs-se a gritar
quando despertou, assombrado por imagens tão estranhas.

Ele recobrou o vigor,
já não sentia mais dor.
Tudo o que passou 
não era nada diante do que presenciou, 
ele vislumbrou uma parte do humano fel,
de um copo imenso
que ainda não se esgotou...