quarta-feira, 10 de junho de 2020

Divagações

Todas as nossas constatações nos levam à mesma conclusão: nada faz sentido! É inútil tentar encontrar uma lógica para aquilo que não têm. É como andar em círculos, sempre terminaremos no mesmo lugar. Talvez esta seja a sina humana: buscar um significado para aquilo que não possui nenhum. Ele deve empenhar-se nisto, pois admitir o óbvio pode enlouquecê-lo. É tudo vão, ilusório e sem sentido! O mundo em que vivemos, a vida que temos...Qual o propósito de tudo isso? Este é um mundo de incertezas regido por verdades absolutas.

Não se pode questionar, duvidar, senão crer. Não me refiro à fé religiosa somente, mas a tudo o que é tido por belo e louvável à raça humana. Um mundo que entristece e proíbe chorar. Que priva de oportunidades enquanto cobra atitudes. Que cria padrões de comportamento, pensamento e estilo de vida e considera inadequado quem não se enquadra neles. Um mundo que valoriza o "forte", "belo" e "saudável" em detrimento do "fraco", "feio" e "doente". Que nos ensina a ver certas coisas e pessoas como más e repugnantes, quando na verdade tais produtos são simplesmente consequências de falhas nos modelos originais. São objetos defeituosos que por não estarem em harmonia com os demais devem ser descartados o quanto antes.

Aprendemos desde cedo que certos valores são imprescindíveis. E somos instados a ver algumas coisas como estranhas e antinaturais. Mas não percebemos que tudo o que abominamos é muitas vezes resultado das falhas do sórdido, frágil e desumano sistema que nos governa. O sistema que mata é o mesmo que acusa e atira pedras. Não basta levar à loucura: tem que amarrar o "louco", prendê-lo, mantê-lo sob controle. Ele descobriu demais, precisa ser silenciado.

Um dia aprendemos a enxergar além dos muros que nos cercam. Um dia o pássaro preso na gaiola se dá conta de que a mão que sempre o alimentou é a mesma que o privou da liberdade. O que parecia bom era na verdade uma armadilha, mas não teríamos medo nenhum se não soubessêmos disso.

A existência é a fonte de todos os males. O ser têm muitas necessidades, e não é possível ser feliz estando insatisfeito. O círculo vicioso de querer e nem sempre poder é o drama que acompanhará o ser enquanto o mesmo durar. A consciência é o que ilumina mas também mata.
A ignorância nos protege de nós mesmos. Saber muito nem sempre é bom. Quanto mais alto o homem sobe, mais percebe o quão pequeno ele é.

Quem teme perguntar teme ouvir a resposta. Por isso prefere permanecer na ignorância, pois já sabe o que ocorrerá se ousar sair dela. Um animal bem cuidado não terá vontade de fugir de casa, ainda que a porta esteja aberta.
Enganar a si mesmo é viver a maior mentira de todas. É mentir pra quem já sabe a verdade.

A maior ilusão que você pode ter é a de crer que é dono de sua própria vida. Ninguém é! Enquanto fatores externos, circunstâncias, pessoas, normas, regras sociais, convenções, catástrofes, imprevistos, etc, puderem interferir nas suas escolhas, seus planos, projetos, liberdade e até no seu destino, será inútil pensar que é você quem manda.

Existir em um mundo assim, onde não se tem a certeza de nada nem o controle de tudo é uma experiência angustiante. A vida é um estado de constante tensão. No fim das contas, a morte não é um absurdo, mas sim a vida.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Escapismo e fuga

Num dia qualquer ela nasceu
com o pé esquerdo
e ninguém percebeu.
Era noite fria
como jamais se viu,
uma noite de abril.

Ela aprendeu todas as lições
com a sua família.
Sempre soube desde cedo
as sagradas letras,
as santas convicções,
o que fazer pode
e o que não fazer podia.

Ela cresceu bonita e sadia.
Como toda criança
brincava, sonhava, sorria.
Não havia dias maus,
só alegria e esperança,
mesmo na luta, mesmo no caos.

De repente algo mudou.
O azul virou cinza,
o arco-íris ficou sem cor.
Era natal
mas Papai Noel não veio
e presente não deixou.

O que aconteceu,
porque o doce perdeu o sabor?
O que antes a encantava
não mais lhe atraía.
Ela se esforçava
mas não era como antes,
graça seu brinquedo já não tinha,
brincar já não queria.

Agora a menina podia
sem medo ou segredo,
usar o mesmo batom de sua mãe,
e andar de salto alto como sua tia.
Ela já era grande o bastante
pra ser dona do seu nariz,
podia ser o quisesse,
como ela sempre quis.

A euforia durou pouco,
só um instante.
Ser livre não era assim
tão interessante
como de longe parecia.
(Não que ela não soubesse, no fundo já sabia).

Então, ela chorou
quando lembrou
de um tempo tão belo
que para trás ficou.
Ele nunca mais vai voltar,
e pra frente deve caminhar
pois a vida é curta
e não pode parar.

Porém ela sozinha e abandonada ficou.
Desiludida e decepcionada
à tristeza se entregou.
Sentiu-se injustiçada
com a realidade que a cercava,
em como a vida a tratou.

Sorrir muito lhe custava,
a amargura em seu semblante
se podia ver, já se notava.
Era a exteriorização da dor flamejante que por dentro carregava.

Ela sofreu, seu coração morreu.
Pessoas a maltrataram,
dela zombaram,
seu amor desprezaram.
A paixão virou rancor,
o que era sólido derreteu,
o sonho acabou!

Cansada e triste, ela desistiu.
Seu corpo sangrou,
enquanto sua alma sorriu.
Cada corte no pulso,
insano, sem razão,
aliviava um pedaço d' alma,
cicatrizava o coração.

Ela se foi numa tarde fria de inverno.
A paz buscou, sem medo se lançou.
Há quem pense que ela a alcançou,
e quem diga que não (foi pro inferno).
Seja como for, ela partiu,
a bela menina que nasceu
em uma noite fria de abril.