quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ajuda-me


Senhor, ajuda-me
pois preciso de ti. 
Sem ti nada posso, 
auxilia-me, 
pela minha própria sorte temo e temi. 

Que hei de fazer 
se no juízo final me ver
e cheio de pecado estiver?
Quando minha humana ousadia para contra ti pecar, que nessa terra tive 
estiver exposta, quem de tua ira e justiça 
poderá me livrar? 

Os dias são curtos 
e talvez eu não esteja 
fazendo o que aos teus olhos é bem. 
Ó Senhor ajuda-me, 
por favor acuda, 
só tu podes e mais ninguém! 

Sim Deus, não me deixes errar conscientemente, 
tomar um mau caminho eterno, 
correndo descer para o inferno. 
Ensina-me a fazer a tua vontade, a única verdade! 

Ajuda-me Senhor 
a tomar o caminho da fé e do amor, 
dá às minha trevas luz, 
ilumina meu caminho Jesus, sim, ajuda-me 
pois só tu podes Senhor!

sábado, 21 de novembro de 2020

Muitas estradas, um só caminho

I

Num domingo ensolarado, uma bela senhorita passeia no parque, acompanhada de sua cachorrinha de estimação. Senta-se num banco, enquanto vê o movimento, aprecia a paisagem. Sem perceber, ela é observada com grande admiração por um jovem que se encontra a poucos metros de distância. Ele fica impressionado com sua beleza e elegância, e decide então abordá-la. Cria coragem, dá os primeiros passos. Um pouco tímido, ele avança. 

Começa falando do calor sufocante que está fazendo, comenta sobre como gosta de animais. A conversa flui e ele logo a convida para sair. Com um sorriso cativante, ela aceita. 

O encontro acontece. Eles passam agradáveis momentos juntos, que se tornam mais frequentes. Começam a namorar. Noivam e por fim casam-se. 

Desfrutam de uma felicidade que não pode ser expressa em palavras. Tudo vai bem, ambos se completam e se amam, mas ainda não estão satisfeitos. Precisam de algo mais. Algo que possa materializar e eternizar este amor que sentem. 

É aí que surge uma idéia brilhante: "Precisamos ter um filho!" Que maior prova de tão grande amor pode haver? Iniciam o processo. Sem muito esforço, alcançam aquilo que desejam. Uma nova vida foi gerada, o milagre da vida se repete, um novo ser foi concebido. Ele deverá dar alegria a seus pais, ele é tudo que eles sonharam.

II 

O menino cresce, é a alegria da casa e o orgulho dos pais. Elogiado pelos professores, é um aluno exemplar. Tira boas notas, é alegre e brincalhão, enérgico. Sua vida é só alegria. Até então...até que ele cresce e chega o momento de tomar suas próprias decisões e assumir o controle de sua vida.

III 

Nosso menino, agora moço, têm preocupações que são comuns às pessoas de sua idade. Somente ele pode entendê-las. Contudo, há um agravante: ele encontra um país devastado por uma crise econômica, o que para ele significa ter maiores dificuldades para conseguir um simples emprego. O jovem não possui, naturalmente, nenhuma experiência profissional, o que dificulta-lhe em demasia. 

Ele sente-se frustrado, decepcionado, desesperado. Até pouco tempo atrás ele fazia tantos planos, tinha sonhos, e todos foram perdidos de uma só vez...A realidade não é de longe o que parece ser, só quem está dentro sabe como realmente é. 

O rapaz questiona o porquê de tamanha injustiça. Clama aos céus, sem resposta. Ele só queria ter uma vida comum, como todas as pessoas, mas até o básico tornara-se difícil para ele. Mesmo sabendo que não é o único em tal situação, isto não lhe traz nenhum consolo, apenas faz-lhe entender que não é sua culpa, é uma tragédia social e um drama coletivo. 

Ele tenta aceitar sua triste realidade, tendo esperanças de que um dia tudo melhore, ainda que esse dia pareça muito distante.

IV

Durante o longo período que passa parado, o rapaz começa a pensar e repensar várias coisas. Este tempo de ócio é como um hiato na transição da adolescência à vida adulta, um amargo e inesperado intervalo, um tempo propício à reflexão. O rapaz começa a questionar muitas coisas que antes não notava (apesar de estarem diante de seus olhos, nunca tinham tido tanta relevância como agora). 
Ele sente-se perdido em meio a seus pensamentos que o afogam cada vez mais. Quer livrar-se deles, mas não consegue...Não pode simplesmente fingir que nada está acontecendo. 

Mais cedo ou mais tarde esse momento ia acontecer, o desemprego apenas serviu para antecipá-lo. Quando tudo flui naturalmente sem maiores dificuldades, não há espaço para questionamentos internos e avaliações. Basta porém, que algo saia do curso da normalidade para que tenhamos que rever nossos valores, nossas crenças, nossos hábitos, nossos planos e até a nossa própria existência. 

É exatamente isso o que ocorreu com nosso rapaz. Se ele tão somente tivesse se formado e conseguido um emprego, tivesse saído da escola e logo estivesse trabalhando em uma empresa qualquer, sua vida teria seguido o curso natural, sem interrupções. Mas não foi isso o que aconteceu. De repente, tudo mudou: sua tranquilidade foi-lhe tirada no momento que sua rotina escolar acabou e ele não conseguiu um trabalho. Seus sonhos foram destruídos por um sistema cruel e desumano que não se importa com seus sentimentos. Seu futuro ficou incerto, sua própria identidade se viu abalada por essas repentinas e avassaladoras mudanças. 

Tudo tornou-se tão claro e ao mesmo tempo tão difícil! Nunca as palavras de Camus fizeram tanto sentido: "Começar a pensar é começar a ser atormentado".

V

Quando era criança, o rapaz via as penosas aflições da vida adulta como algo distante. Ele não entendia porquê seu pai vivia de "cabeça quente". Isso não fazia sentido para ele. Agora ele compreende perfeitamente o que seu pai sentia. Hoje é justamente a paz da infância que ele é incapaz de compreender: como tudo podia ser tão bom apesar das dificuldades? 

Não foi o mundo que mudou. O mundo foi, é e continua sendo o mesmo. É ele que cresceu e passou a entender o que antes não entendia. Até que ponto isso é bom, não se sabe ao certo. A única certeza que têm é de que nunca voltará a ser o mesmo. 

Sua nova percepção da realidade traz consigo novos desejos, necessidades e também responsabilidades. Isso o acompanhará pelo resto de seus dias. Este é o preço que se tem que pagar para ser senhor de si.

VI 

O rapaz se dá conta de que agora ele terá que assumir muitas responsabilidades que antes não lhe pertenciam. E que as escolhas que fizer irão ecoar por toda a eternidade...O sentimento que têm é de perplexidade. Ele não sabe o que fazer, apenas sabe que precisa fazer algo. 

Quando olha para o passado, sente saudades da época em que tudo era mais fácil e simples.Quando vê o presente esbarra em incontáveis problemas que tiram-lhe a paz...Quando pensa no futuro, o que encontra são incertezas, a dúvida se suas expectativas se concretizarão, se o amanhã será melhor que o hoje...Ele de fato não têm certeza de nada, a não ser de que tudo é incerto. Vive em um mundo de infinitas possibilidades onde só uma é possível! Isso é o que lhe atormenta, não saber que rumo tomar, não saber qual é o melhor caminho a seguir. 

Chega um momento em que somos obrigados a tomar decisões, e não podemos fazer como Pôncio Pilatos, lavar as mãos e fingir que não é conosco.

VII

O rapaz sente o peso dos anos. Cada aniversário não é mais uma simples data, é um verdadeiro convite à reflexão. Embora seja jovem, ele sente o tempo escapar-lhe das mãos, numa marcha ininterrupta que não se pode parar. Todo o ano é reavaliado. O próximo aniversário é visto com leve temor: "Já tenho tantos anos"...

Ainda que no fundo saiba que sua inquietação é exagerada, já que como dizem, ele têm "todo o tempo do mundo", não há como evitar o incômodo. O rapaz vê-se obrigado a assumir suas obrigações como adulto (das quais ainda estava isento quando adolescente), e vê sua infância ficar cada vez mais distante, convertendo-se em um tesouro bem guardado no baú das lembranças do qual é sem dúvida a melhor de todas as recordações.

VIII 

O rapaz sente-se profundamente angustiado. Lhe custa muito aceitar que a realidade que vive atualmente é a mesma que viverá para sempre. Isso é, mesmo que seus problemas sejam resolvidos, novos problemas surgirão. É um ciclo que se repetirá e não tem como fugir. "Então a vida é isso?", indaga-se. A resposta é sim! 

Por muito tempo ele acreditou numa mentira. Fizeram-lhe crer em ilusões. O choque de realidade ocorre, ele está só neste processo. Ninguém pode ajudá-lo, essa é uma guerra que terá que lutar sozinho.

IX

Talvez seus pais não soubessem o que estavam fazendo quando o trouxeram à vida. É provável que não tenham refletido com seriedade nas consequências desta decisão. Por um simples capricho, egoísta e impensado, deram a luz a um ser que sofre e não entende qual a sua finalidade nesse jogo. "Eles não deveriam ter feito isso comigo", pensa. "Eu não precisava estar passando por isso". 

O jovem sente então uma imensa raiva por tudo e por todos. Promete a si mesmo que jamais repetirá o erro de seus pais, que nunca ousará perturbar o sossego de quem quer que seja. Que nunca em seus momentos mais alegres e impulsivos se atreverá a criar uma nova vida que terá que sofrer como ele está sofrendo. Nunca! "Eu não quero perpetuar o ciclo da dor, não quero contribuir com o sofrimento". Decide que não terá filhos. 

Não há necessidade de gerar um novo ser que terá de chorar, sofrer...tudo a troco de nada! Apenas para que seus pais possam orgulhar-se de ter formado uma família, apenas para que vejam o resultado de seu experimento..."Ele se parece tanto com o pai"! "Não, é a carinha da mãe!" 

Ele entende o que poucos conseguem entender: o maior gesto de amor de um pai para com o filho é não trazê-lo ao mundo! "Se eu sei que meu filho terá de passar por tudo isso, sei que ele vai sofrer e que talvez não possa ajudá-lo, porque o colocarei no mundo? Qual a lógica de tirá-lo da inexistência e trazê-lo para um mundo que nada melhor tem a oferecer?" 

O nobre rapaz não consegue encontrar nenhuma resposta satisfatória à essa pergunta, e se convence de estar tomando a melhor decisão, embora geralmente não seja compreendido.

X

Contudo, ele decide não culpar seus pais. Ele sabe que o que fizeram, o fizeram com a melhor das intenções. Só queriam o seu bem. Só queriam dividir a alegria que tinham com ele, compartilhar bons momentos com sua cria. Eles não têm culpa pelas coisas ruins que lhe aconteceram, muito pelo contrário, sempre o ampararam nos momentos difíceis. De fato, eles não têm culpa de nada. 

Apesar de entender isso, o rapaz segue insatisfeito. Sua insatisfação é visível, seus pais se compadecem, tentam ajudá-lo. Ele procura tranquilizá-los, "está tudo bem", diz. Mas no íntimo ele sabe que não está.

XI

É incrível como escolher pode ser algo tão difícil. Kierkegaard dizia que "Existir significa escolher, mas isso não representa a riqueza, mas a miséria do homem". Sem dúvida ele tem razão, já que o homem vive em um estado de indecisão permanente, tendo a possibilidade de 'sim' e de 'não' sem possuir qualquer critério seguro. Ele tem diante de si várias propostas, muitas alternativas e não pode saber qual a melhor até que decida escolher. Uma vez escolhendo, terá de lidar com a dúvida se fez a escolha certa ou com a insatisfação com a escolha feita. E para que possa escolher outro caminho, precisa abandonar o que está, o que significa abrir mão do que conhece e abraçar o desconhecido. 

Tendo abandonado seu caminho antigo, ele poderá dar-se conta de que estava bem antes e que não percebia isso. E talvez ele não consiga voltar e deva carregar a angústia de ter feito uma escolha errada. Mas como ele saberia que a decisão que tomou é ruim se não tivesse se atrevido a tomá-la? Como disse Albert Camus: "Não se pode criar experiência, é preciso passar por ela." É como se disséssemos: "Eu preciso ver com os meus próprios olhos". E nessa ânsia de tirar suas próprias conclusões, o homem ignora os avisos, os alertas que aqueles que já viveram mais que ele tem a dar. 

Torna-se necessário sentir a mesma dor, passar pela mesma aflição para poder dizer: "Vocês tinham razão." Isto acontece com todos, e não podia ser diferente. Como ser livre que é, o homem está a condenado a cometer erros e sofrer com as consequências destes erros. "Viver é isto, ficar se equilibrando o tempo todo entre escolhas e consequências". Bela frase de Sartre, ilustra bem a questão. 

É precisamente esta a angústia de nosso jovem, que tenta encontrar seu rumo e assumir seu papel, mas não sabe qual escolher. Ele teme fazer escolhas erradas e se arrepender, mas também teme não escolher e vir a arrepender-se de não ter escolhido nada. Ele não poderá saber o que é bom se não ousar experimentar, mas se a sua escolha for má, terá que arcar com as consequências. Este ciclo se repetirá eternamente, sem que seja possível escapar dele. 

"Eu não deveria ter feito isso, não devia ter dito aquilo"...É irracional culpar-se por erros antigos, se o homem está obrigado a tomar decisões e não pode fugir de suas consequências...Mas o homem sempre viverá com a inquietação de que poderia ter feito mais, ter sido mais, ou talvez o oposto, a aflição de ter feito, sido mais do que precisava. A angústia é permanente. Nunca sabemos que decisão tomar e por vezes não estamos satisfeitos com nossas escolhas. 

O jovem têm consciência deste dilema, e isto o aflige grandemente. Ele quer conhecer a verdade, mas pergunta-se: "Qual a verdade se todos dizem estar certos em suas convicções?" A impossibilidade de saber o que é certo, o que é ético, o que é moral, o que é verdadeiro em um mundo onde todos dizem ter razão e carregam diferentes verdades é o que apavora! Ele não sabe quem tem razão, e a menos que se atreva a tomar partido, não poderá saber.

XII 

O rapaz não sabe que caminho seguir. De fato, ele têm uma vida e não sabe o que fazer com ela. Está ciente que não pode fugir das decisões, pois como disse Sartre: "Eu sempre posso escolher, mas devo saber que se não escolher, ainda estou escolhendo." 

"Há muitas estradas e um só caminho...qual devo seguir?" pergunta-se. Seu coração lhe diz: "O que você achar melhor." Ao que responde: "Melhor? O que é melhor para mim pode não ser para minha família". O coração novamente responde: "Apenas siga-o. Eles podem lhe dizer o que é melhor, mas talvez o melhor deles não seja o melhor para você." 

O rapaz hesita. "Como assim? Sempre me disseram o que eu devia fazer. Eu não posso simplesmente contrariá-los." O coração afirma calmamente: "Você não está cometendo nenhum crime. Se dizer o que pensa e se negar a aceitar coisas que lhe parecem absurdas é ofensivo para os demais, ofenda-os, mas não permita que governem os seus atos. Você só têm uma vida e ninguém vai vivê-la por você." O rapaz pensa: "O coração têm razão."

XIII

Acontece, porém, que seguir o coração nem sempre é o melhor a ser feito. O rapaz se encontra desiludido e sem esperança, deixar-se levar pelas emoções pode ser perigoso. "E se eu simplesmente quiser acabar com tudo? Quem vai me impedir?" Ele reflete: "Eu não tenho nada a perder. Só preciso de um pouco de coragem e pronto." 

Um filme passa pela sua cabeça. Lembra-se de sua vida, desde os primeiros anos até o momento presente. Faz um balanço das experiências negativas que teve e pensa no que pode ocorrer no futuro. "Não sei o que fazer, estou perdido, se eu desse um fim nisso agora tudo seria mais fácil". O rapaz percebe que não têm essa coragem fatal. Ele entende, respeita e até admira os que ousaram fazer o que ele não se atreve. 

"Isso não é pra mim. É melhor suportar o que tiver que suportar, não tenho outra opção." O jovem desiste do gesto extremo. Ele sabe que tudo seria bem mais fácil se simplesmente não tivesse nascido, mas agora que existe e é um ser, não pode sair de cena assim tão fácilmente, não pode fugir sem causar algum impacto em seus entes queridos. 

Ele não quer manchar sua biografia. E a não ser que deixe de se importar com as consequências de seu ato, decida romper com a ética e ultrapasse os limites da razão, deixando-se levar totalmente pela emoção, ele não será capaz de conseguir o que quer. Isto é, a única maneira de dar um fim à seu sofrimento é permitindo-se arrastar por esse desejo destrutivo, que pode ser libertador. Mas ele não sabe se isso é realmente o melhor. À primeira vista parece ser. "O que eu ganho com isso? Nada. O que eu perco com isso? Nada." Mas o ato não pode ser nulo. O rapaz está ciente de que não há volta, e que uma vez feito, não há espaço para arrependimento. Ele percebe então que não está disposto a se arriscar. Prefere continuar correndo os riscos do que conhece a atrever-se a enfrentar o desconhecido. 

Ele está desesperado, mas ainda assim não têm as qualidades suficientes para dar um salto definitivo em meio ao desespero. "Como eu queria, num transe arrebatador, desvairado e atrevido, dar um fim à minha dor, oh, como eu queria em um ímpeto acabar com tudo!" 

O rapaz gostaria de ter essa transgressora coragem, essa ímpia valentia. Mas, no fundo ele sabe que não a possui. Decide então não pensar mais nisso, custe o que custar, mesmo que a pressão aumente e pareça não haver outra saída. 

"Este gesto é de fato nobre, mas não sou digno de tamanha nobreza", conclui.

XIV

Uma vez descartada a fuga, restam outras opções a serem consideradas. Uma delas e talvez a mais comum de todas, é aquela em que o ser busca ligar-se a um ser superior, divino e eterno. O físico une-se ao espiritual, o finito ao infinito, o terreno eleva-se até o céu. O jovem decide entregar-se plenamente à religião. "Eu preciso de uma razão para viver, Deus é essa razão." 

O rapaz começa a frequentar os cultos. Pouco depois, batiza-se em uma igreja evangélica. Sua família alegra-se muito. Seu semblante tornara-se sereno, finalmente o jovem encontrara a paz. Ele está irradiante. As coisas nunca tinham sido tão fáceis para ele como eram agora. Ele podia explicar tudo, tinha respostas para todas as coisas. Tudo podia ser justificado e entendido à luz do livro sagrado. Não tinha porquê sofrer. Bastava crer e entregar suas preocupações, Deus cuidaria de tudo. 

O jovem toma a iniciativa de ler a Bíblia. Quer conhecer melhor a palavra do Senhor. E é o que se propõe fazer, empolgadamente. Ele inicia a leitura. Lê tudo, atentamente. Alguns textos lhe chamam a atenção, não consegue entendê-los. "Não devo questionar, só crer", diz consigo mesmo. Porém a perplexidade continua. "Como pode ser isso? Realmente não entendo." 

O rapaz não quer admitir suas inquietações. Por muito tempo, abafa, silencia, finge não ver o que está vendo. Não lhe é conveniente querer saber mais do que precisa. Mas o desconforto permanece. Suas dúvidas crescem sutil e fortemente e não há quem as explique de maneira honesta e satisfatória.

XV

Com grande relutância, o rapaz aceita que este também não é o melhor caminho, pelo menos não para ele. Ele queria crer, ele tentou crer, ele se esforçou para crer, mas não conseguiu. Por não ser capaz de entender certas coisas que para muitos não passam de simples detalhes mas para ele têm importância crucial, este não é o seu caminho. Pode ser o melhor para seu pai, sua mãe e principalmente sua irmã, mas não para ele. 

"Como eu gostaria de ser como minha irmã, tão cheia de fé! Ela sim é sábia, não eu! Ela está no caminho certo, como eu queria estar nessa sintonia!", observa. "Sou demasiado confuso, crítico, questionador. Não posso fechar os olhos e me jogar de cabeça, não posso me lançar assim sem medo, abraçar o escuro com calma e serenidade. Não consigo dar o salto!" 

O rapaz sabe que tudo lhe seria bem mais simples se ousasse dar o salto da fé. Ele teria uma razão sólida para viver, um motivo que nenhuma tormenta mundana, nenhuma perturbação poderia abalar. Ele deseja fortemente ter essa confiança, essa determinação, essa força, essa fé. O rapaz admira os que encontram refúgio no invisível, no puro, no incognoscível, no eterno. Mas admite que sendo honesto consigo mesmo e leal a si próprio, essa bela alternativa não é para ele.

XVI

Søren Kierkegaard enfatizava bastante a angústia e o desespero humano. Com toda a razão! São sentimentos que todo indivíduo conhecerá um dia, e terá que enfrentar sozinho. O rapaz que aqui tomo como exemplo não é um herói, mas um modelo das amplas e variadas gamas de sensações que um homem pode experimentar. Humano, demasiado humano, como dizia Nietzsche. 

As maiores e mais profundas revoluções ocorrem por dentro, não por fora. As maiores guerras são as que travamos com nós mesmos e após árdua peleja saímos vencedores. São essas batalhas as que lutamos sem que ninguém veja e as vencemos sem que alguém perceba. Todos já passamos por isso; Há coisas que só nós podemos fazer. 

Nosso rapaz encontra-se em desespero. O desespero de não querer ser ele mesmo. E, em parte, o desespero de querer ser ele mesmo. Kierkegaard assinala ambos como sendo comuns ao homem, com bastante precisão. 

Em sua angústia o rapaz não quer ser ele próprio. Sente vergonha: "Sou um péssimo filho, meus pais não mereciam isso." Ele se cobra atitudes que não pode dar. Ignora ter feito o melhor que pôde. Carrega um peso que não deveria carregar, mas que tomou para si. 

No desespero de querer ser ele próprio, tenta ao máximo construir uma identidade única. Porém choca-se com os valores e tradições aprendidos pela família, valores nos quais não consegue se adequar e teme negar. Ele quer ser ele próprio, mas não pode fazer isso sem destruir a imagem quase canônica que fizeram dele. 

Sua maior angústia é não saber a quem ser fiel. Ele não quer frustrar as expectativas de seus pais, familiares e amigos, mas tampouco quer continuar vivendo uma mentira. Cedo ou tarde terá de escolher a quem obedecer, se às vozes que vêm de fora lhe dizendo o que fazer, ou à voz do coração que ele teme ouvir e finge não escutar.

XVII

Muitas dúvidas passam pela cabeça de nosso rapaz. Seus pais, constantemente o vêem pensativo, absorto em suas idéias. Preocupam-se com o estado de espírito do filho, querem ajudá-lo, mas sentem que não podem fazer nada. O rapaz sente-se péssimo por estar nesta situação, não queria estar assim. Tenta pensar nas pessoas que sofrem muito mais do que ele, pessoas que não têm o que comer, não têm um teto para dormir, não têm um lar. Pensa nos deficientes, nos órfãos, nos que lutam para sobreviver em um leito de hospital..."Eu não deveria me queixar. Eu não sou tão miserável assim, se comparado a algumas pessoas sou um privilegiado..." Isso é o que repete a si várias vezes, tentando confortar-se com tais palavras. No entanto, elas não mudam sua frustração, a grande insatisfação que sente. 

Ele queria poder expressar sua raiva, sua revolta, sua indignação, mas não há como fazê-lo. As coisas são como são e não se pode mudá-las. E é justamente isso o que o incomoda. "Porquê tem de ser assim?". Por mais que pense, não consegue entender, seus raciocínios andam em círculos sem chegar à uma conclusão satisfatória. 

Nunca o mundo lhe pareceu tão cruel, nunca a vida lhe pareceu tão injusta, nunca a realidade lhe pareceu tão assustadora! Ele abriu a caixa de Pandora, comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal, ousou roubar o fogo sagrado dos deuses. Está pagando o preço por este saber elevado, está se afundando nos abismos do nada, confrontando o absurdo. Ele quer encontrar uma forma de lidar com isso e precisa descobrir sozinho.

XVIII

O momento não poderia ser mais propício à reflexão, a auto-análise; o cenário é perfeito para o desencadear de uma crise, é como se o universo inteiro, os deuses e a fortuna tivessem feito um pacto e de maneira sórdida e zombeteira houvessem tramado contra o nosso pobre rapaz: "Vejamos como ele reagirá". Suas forças tiveram de ser testadas. Sua resiliência foi posta à prova; sua sanidade ficou em jogo, suas emoções instáveis. Sua angústia, com bastante fundamento, foi elevada à enésima potência. O jovem se encontra no olho de um furacão, no meio de uma tempestade, está atravessando um deserto sem saber se achará um oásis no final. 

O rapaz têm 24 anos, está desempregado em meio a uma grave crise econômica agravada pela pandemia de Coronavírus. Está de fato, vivendo dias absurdos que nem mesmo em seus piores pesadelos poderia imaginar! E não há muito o que fazer, é como se estivesse a mercê da sorte. Sua irmã está prestes a se casar e se mudará para uma cidade distante. Ele está feliz com a alegria da irmã, mas extremamente insatisfeito com as circunstâncias que este casamento ocorrerá. "Eu devia estar ajudando nas contas de casa, devia estar contribuindo, sendo útil...Tantos anos morando em uma cidade grande e nunca consegui um emprego..." Sua irmã ajudava com as despesas de casa, mas com o casamento sua ajuda acabará, e o rapaz sente-se humilhado por não poder ajudar, mesmo sabendo que isso não depende só dele, alguém precisa lhe dar uma oportunidade. 

"Eu só queria um trabalho, nada mais. É pedir muito?", pensa. Para piorar, há a possibilidade de que o rapaz tenha que voltar a morar no interior. Isso pode ocorrer caso seu pai sozinho (sem ter mais a ajuda da filha) não consiga arcar com as despesas (aluguel, alimentação, contas) e decida voltar a morar na cidade pequena onde sua família têm casa própria e é também onde o rapaz sofreu Bulliyng, e possui péssimas recordações. Isso é tudo o que ele não quer! Mas sem perspectivas de arrumar trabalho e ajudar nas contas, o risco não pode ser negado. 

"O que aconteceu, até pouco tempo tudo era diferente, porque agora é tão difícil? Quando isso terminará?", pergunta-se. Ninguém sabe ao certo. É preciso paciência, não há outra opção.

XIX 

O rapaz aventura-se em uma vida desregrada. Tenta encontrar felicidade no prazer. Sem escrúpulos morais, deveres religiosos e amarras éticas, procura dar atenção à seus instintos corpóreos e realizar plenamente o que lhe ordenam seus sentidos. "Nada pode ou deve ser negado", pensa. "Eu devo me dar por satisfeito com o que tenho de concreto, aproveitar o aqui e o agora, não me ater a esperanças vãs e crenças infundadas que só servem para me enganar e tiram o foco do que há de belo e alegre, me impedem de desfrutar do que é palpável e seguro, e me prometem alegrias que não posso ver muito menos sentir!"

O prazer é recompensado em si mesmo, não precisa durar para sempre. "O que há de errado em gozar das alegrias da vida e querê-las em toda sua plenitude?", diz. "Não há nenhum crime em aceitar a natureza, abraçá-la e vivê-la! Eu não quero estar em uma constante luta comigo mesmo, por não me aceitar como sou! Quero simplesmente celebrar a vida tal como ela é, desfrutar de toda suas delícias! Apreciar o que meus olhos podem ver, saborear o que meus sentidos podem dar!"

O rapaz irradia uma espontânea alegria. O prazer é seu foco, buscá-lo
passa a ser sua razão de ser! 

A euforia não duraria muito. Desde cedo, o jovem percebe que o prazer nada mais é que satisfação imediata, não felicidade. Que ele não pode dar nenhuma alegria permanente se em sua natureza, consiste em um gozo temporário. E que toda vez que esse gozo temporário acaba e essa satisfação se realiza, o que fica é o vazio, este sim é permanente. Cada tentativa desesperada de preenchê-lo é vã, é ilusória. Ao perder-se o objeto da satisfação imediata, este buraco cresce, acentua-se mais. O prazer também não o preenche.

XX

Viver nunca foi fácil para ninguém, mas para algumas pessoas costuma ser ainda mais difícil. Tal ocorre com aqueles que possuem um coração sensível, uma alma frágil e um olhar atento as vicissitudes do meio que o cerca. Como disse Schopenhauer: "Quanto mais elevado o espírito, mais ele sofre." 

O rapaz não teve uma vida fácil. Não nasceu em berço de ouro, nunca teve quem o patrocinasse. Nunca foi bancado por ninguém, tudo o que conquistou foi por esforço próprio. Desde pequeno teve de enfrentar os prejuízos causados pela limitação econômica. Suas asas foram cortadas pela escassez de recursos que o impediram de voar. 

Apesar disso, teve uma infância feliz. Na adolescência, a timidez o atrapalhou e o impediu de viver muitas coisas. Quando adulto, o jovem vê seus sonhos e anseios se frustarem e serem congelados pelo desemprego. Raiva, tristeza, frustração...os sentimentos se misturam. Não, definitivamente ele não é um mimado, ingrato e egoísta. Ele é um guerreiro, é mais forte do que imagina. 

Amante da arte, o jovem encontrou nela um consolo. "Temos a arte para não morrer da verdade", diria Nietzsche. O rapaz fica admirado toda vez que se depara com uma obra que descreve algum sentimento que vivenciara. É como se o artista estivesse lendo sua alma! Vê-se representado em tais obras, o que faz crescer sua admiração para com o artista que a compôs. É um verdadeiro deleite para seu espírito, um momento único e transcendental. 

O rapaz pretende conhecer mais e mais desse universo fantástico. Quer fundir-se nele, tornar-se parte dele, e deixar-se levar por ele. É assim que poderá tranquilizar sua aflita alma.

XXI

O rapaz finalmente entende que não encontrou seu caminho, e que talvez nunca o encontrará. Por mais que tenha tentado, não conseguiu achar uma solução para o problema de existir. Não que existir seja em si um problema, a questão são as condições disponíveis para exercer a existência. Elas não lhe parecem justas, mas o que pode fazer, senão aceitá-las? De fato, nada, a não ser se queixar. 

Não devemos surpreender-nos com as indagações do jovem. Todos em algum momento já as tiveram ou terão. Cada um tenta solucioná-las à sua maneira, o ponto comum é que ninguém consegue escapar de passar por tais indagações. 

"Eu não pedi para nascer, não pude escolher o país, a família, a época nem o sexo em que nasceria. Eu não sou uma folha de papel em branco como disse Locke, pois muitas características que tenho foram herdadas de meus pais e alguns parentes. Minhas condições econômicas não são das melhores, o que significa que terei de lutar muito para sobreviver. 

Eu não sei se Deus existe e tampouco posso provar sua inexistência. Não sei qual é a melhor maneira de viver se existem várias e cada um escolhe uma forma diferente. Não sei qual é a verdade em meio a tantas opiniões, conceitos e definições. Como posso saber o que é certo? A única certeza que tenho é que um dia morrerei, mas também não sei quando. Eu só tenho uma vida que pode acabar a qualquer momento! 

As religiões me ameaçam com um inferno enquanto me prometem um lugar no céu. Contudo, eu não tenho como saber se essas coisas existem antes de morrer e se quiser acreditar nelas terei que renunciar a muitas coisas boas, alegres e prazerosas em prol de crenças que não se podem provar. Terei de abrir mão da vida que tenho que apesar de não ser perfeita, é o único bem que possuo, a única existência que conheço! Se abro mão de tudo e dou o salto da fé, posso ganhar muito com essa escolha. Um gozo celestial e eterno me esperam! Mas, se este paraíso não existir e tudo não passar de uma farsa, eu terei aberto mão de todas as alegrias e prazeres mundanos a troco de nada! Serei uma simples comida de vermes como todos os demais. Terei tido preocupações vãs e perturbações idiotas!

Mas se estiver errado, esse céu e inferno existirem, e eu em minha cega arrogância e obstinado desdém, eu ousar desprezar tão preciosa dádiva, infinitamente superior a qualquer paixão que aqui possa ter, se eu, oh, cego e louco seguir a multidão em tamanho ultraje, serei culpado de um crime imperdoável! Quem poderá salvar-me das mãos de Deus, das eternas chamas de sua ira? Quem me livrará de sua justa vingança? 

Oh céus, não sei o que escolher! Há tantas estradas e um só caminho...Como poderei saber? 

Todos me dizem o que fazer, mas ninguém o fará por mim! Todos querem me ensinar a viver, mas ninguém viverá por mim! 

Muito em breve serei um ancião, meu corpo vai debilitar-se, minha saúde também! E o que terá sido de mim? Terei aprendido a amar, perdoar, a ter paciência? Serei um ser humano melhor? Conseguirei sorrir e agradecer me esquecendo de meus problemas? Terei evoluído ou continuarei sendo o mesmo? Que lição poderei tirar de tudo isso? E se a história terminar sem nenhuma lição?"

O rapaz ocupa-se com estas questões. Para ele, elas não são detalhes irrelevantes mas fundamentais, que podem determinar muito em suas decisões.

XXII

Para o rapaz, não há dúvidas de que tudo seria muito mais simples se ele não tivesse nascido. Para ele, não faz sentido existir em um universo assim, viver em um mundo onde existem infinitas possibilidades e só uma é possível. Onde há muitas estradas e um só caminho. Onde são propostas várias alternativas e só uma é de fato a melhor...Muitas opções e só uma é a correta, a verdadeira, a certa...Não existe negociação: Ele deve fazer escolhas! Ser ele mesmo e ser fiel a si ou ser o que querem que ele seja e mentir a si próprio... 

O rapaz entende que não pode ter todas as respostas e que seria uma grande pretensão sua querer saber tudo. Talvez esta seja a questão: o prazer não está em saber tudo, mas em aprender um pouco a cada dia. Ele decide abraçar este mistério, viver essa aventura, experimentar essa realidade. Decide não se deixar levar por excessivas e banais preocupações, e nem se preocupar com a qualidade das experiências. Quantidade pode não significar qualidade, mas representa um número maior de oportunidades oferecidas. 

O rapaz está ciente de quem ele é. Não precisa mais se preocupar com as opiniões dos demais, ele é exclusivo, é único! Sabe bem do seu valor. Ele entendeu que aconteça o que acontecer, não é menos homem, não é um ser humano inferior se não fizer o que os outros fazem: ele têm suas próprias leis! 

Não há porque se preocupar com o futuro. Mesmo que se façam planos, nunca se poderá ter certeza se esses se concretizarão. Também não é necessário entender tudo, apenas sentir. Porque tentar entender tudo? O jovem não perderá sua tranquilidade com isso. Ele não é Atlas para sustentar o peso do mundo em suas costas! Mesmo que seja incapaz de entender muitas coisas, isso não o impede de sentí-las e aproveitá-las. 

Talvez ele esteja certo e nada disso faça sentido. Mas que importa? Abraçar o absurdo é dizer sim à vida. Não há explicação, não há lógica, não existe uma fórmula mágica. Respostas prontas não valem. Tudo não passa de uma grande incoerência. E é justamente isso - a falta de sentido - o que torna a experiência mais interessante, mais fascinante, convidativa. 

"Quem sou eu nessa história? Não sei, apenas exerço o meu papel", reflete o rapaz. 

"Nem tudo precisa fazer sentido, nem tudo precisa ter lógica. Somos todos navegantes nesse imenso oceano, sem bússola, sem mapa, procurando um tesouro que não sabemos se existe, temendo monstros imaginários! Nos alegramos com a música, a dança, a comida. No fim das contas não é o destino que importa, mas a travessia. Não é a resposta que nos satisfaz, mas o caminho que percorremos para chegar até ela."

Assim reflete o rapaz. Ele não sabe qual é o caminho certo, e não se preocupará com isso. O prazer não é descobrir, mas procurar, e nessa busca aprender sempre mais, pois como disse Kierkegaard: "A vida não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser experimentada."


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Bastidores

Dispense o seu dinheiro, 
ele não pode me ajudar. 
Guarde suas belas palavras, 
já conheço este discurso inteiro, e sei muito bem como isso vai terminar. 

Eu estou em pedaços 
e não posso me recompor. 
Adoraria seguir seus passos, 
ir aonde você for. 
Mas o meu caminho será diferente 
e igual ao de muita gente, 
lhe peço, não me acompanhe, por favor. 

Somos autores da nossa história, senhores de nosso destino. 
A cada um coube uma parte nesse espetáculo, 
essa tragicômica arte. 
Você é o ator por detrás da cortina, lhe espera o fracasso ou a glória. 

O que você passou nos bastidores ninguém sabe,
ninguém soube. 
Suas lágrimas, risos e dores ali ficaram. 
Mas já passaram, 
caíram nesta viagem. 
Ei, já chega! 
Não vamos borrar a maquiagem.

sábado, 14 de novembro de 2020

O homem que não trabalhava

Desperta mais um dia 
sob a luz matutina. 
Não sabe para onde ir 
nem o que fazer, 
sua rotina é não ter rotina. 

A cabeça está cheia 
e a carteira vazia. 
Falta-lhe dinheiro até pra uma meia, 
que dirá para aquela peça 
que na vitrine viu 
e comprar tanto queria! 

Sai para entregar seu currículo,
na primeira empresa que aparecer. 
O que vier serve, 
repositor, faxineiro, frentista, não pode escolher. 

Fica atento ao telefone 
como um fã no aguardo do artista. 
Não pode crer que sua espera é vã, 
não vão chamá-lo à uma entrevista. 

Cada dia de ócio
é um péssimo negócio, 
desperdício de um bem 
tão importante e precioso, 
o seu tempo valioso. 
Lhe dói passar cada instante 
numa inércia angustiante.

Tenta convencer-se de que tudo isso vai passar 
e que sua hora vai chegar. 
Esquiva-se de amigos e parentes, 
sabe que irão perguntá-lo 
sobre sua situação, 
irão lhe indagar, mas não ajudar.

Passa a maior parte do tempo em casa, 
triste e desanimado. 
Embora saiba que não é o único neste quadro, 
o sentimento de culpa persiste, permanece angustiado. 

Surge uma oportunidade, ele levanta-se, vai atrás, todo empolgado. 
Comparece à entrevista, 
faz o melhor que pode. 
Dias depois recebe uma ligação, 
ansioso atende,
crendo ter sido selecionado. 
Mas não é o que pensava, 
sem explicação, fora rejeitado. 

O homem se entristece, 
o semblante empalidece. 
Percebe que sua dor não é só um momento. 
Desiste de procurar aquilo 
que sabe que não vai encontrar, cai no desalento. 

As horas se transformam em dias, 
os dias em semanas, 
as semanas em meses, 
os meses em anos. 
Muitas vezes, de lágrimas
 se adornam
esses tempos que se perdem e não retornam, as horas livres e insanas. 

O homem se desconhece, 
já não sabe mais quem é. 
Seu corpo enfraquece, 
sua mente enlouquece, 
entra em crise de identidade, e no futuro perde a fé. 

Olha para a janela, 
vê o movimento da cidade. Sente-se perdido, 
abandonado e excluído. 
É mais uma segunda-feira, para muitos um dial normal e patético, mas não para ele, um desempregado. 

Ele resigna-se à seu triste estado. 
O homem então aceita sua nova realidade,
tornara-se um animal doméstico.