quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Esquizofrenia


Esquizofrenia é um muro fechado que aprisiona uma só vítima, presa na "loucura" vive um mundo de torturas, sem sequer direito a liberdade 
ou mesmo visita íntima. 

É uma grade protetora
de um campo de concentração onde só estão, soldado armado e a pobre alma infratora. 
Uma espera horrível de uma execução que nunca vem, de uma presa que para estar assim, nenhum pecado têm. 

Uma cerca elétrica sempre ligada na maior voltagem possível. 
Cerca essa que protege a mansão de assassinos, 
traficantes barra pesada, 
como se já não bastasse, guardada em sua entrada por um pitbull terrível.

Sensibilidade a flor da pele, a flor da pele à dura realidade. 
Um claustro pessoal triste e viciante, de quem sair não pode um só instante. 

Peso de quem um mundo não mais consegue suportar, e a si próprio algema para que ninguém mais o possa algemar. 
Uma prisão mística, irreal, paradisíaca, na verdade arquitetada minuciosamente por uma mente que livre quer ser dessa cela chamada realidade. 

A fuga que se faz todo dia do mundo, cruel e profundo, de dores, agonias, de tudo e de todos, essa é a esquizofrenia!

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A ave

Cada minuto que passa 
é um instante que se perde na eternidade. 
É uma ave que voa ligeira 
para um lugar distante 
e mais bonito, fundindo-se no infinito e nos deixando saudade. 

O que agora é, um dia se irá, o que foi já não volta, e não sabemos o que em seguida virá. 
Não podemos
parar a roda, deixemos girar! 
O rio segue seu curso
e desagua no mar. 

Tudo passa, se dissolve, se desfaz! 
Nada é certo, senão o fato de que tudo é incerto, 
e o que hoje é, 
amanhã não será mais. 
Tudo que vem volta, com a mesma rapidez que o vemos chegar. 

Por isso, sorri e abraça aquilo que amas, aproveita, faze-o enquanto podes, para que não te arrependas 
quando vires a ave bater asas de volta à seu lar!

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Minha vila em ruínas

Ando pelas ruas e becos 
lembrando-me do que vivi. Cada viela conta uma história do lugar onde cresci. 

Não me acostumei a ver-te deserta, sem casas, 
sem moradores...
Estranhei o mato seco que cresceu onde era minha casa, que pela relva está coberta, assim como o campo onde jogava bola, eu era o goleiro e os outros na linha jogadores. 

É tão estranho caminhar por aqui e não ouvir o barulho de antes! 
Todos foram embora e não vão voltar; o que era casa agora é entulho, a prefeitura quase tudo logrou demolir, tirou de seus lares a gente que neles vivia, o povo pelo mundo se espalhou, com a indenização nenhuma alma ficou. 

Ah, que pena que tenha que ser assim! 
Não vejo ninguém a brincar, passear ou cantar 
nas ruas e becos onde cresci e dias felizes vivi. 
Não há mais bairro, tudo teve fim. Agora o que tem é mato, pedaços, sumiram as ruas, becos e esquinas, 
ah, que triste é ver minha vila em ruínas!

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Gárgulas

Pedras, obeliscos e colunas ancestrais 
que de pé estais, 
ao calor e a chuva resistis, 
minha aflição assistis, 
há séculos a dor de muitos testemunhais. 

Anjos, demônios,
vejo-vos a olhar-me firme nas fachadas ou nas laterais. 
Sois a riqueza, a glória, a beleza desses museus, dessas antigas catedrais. 

Resplandeceis sob a luz da lua, quando o céu negro a tudo cobre. 
Vossas linhas colossais brilham na madrugada, fazeis dela uma nobre aliada. 
A noite melhor se vêem o sino, o relógio e a escada. 

Com vossas formas monumentais, a cidade enfeitais, elegância à urbana paisagem dais. 
Admiro-vos belas construções, sobreviveis ao tempo, passam-se gerações e permaneceis, vós gárgulas que tanto me encantais!

domingo, 27 de dezembro de 2020

À contemplação de um crânio

Contemplo-te ó carcaça desgastada de meu frágil ser. És o que realmente sou, mas enquanto eu for, ninguém te poderá ver. 

Olho-te atentamente, tens um ar medonho!
Vejo três grandes buracos onde eram o nariz e os olhos, preservam-se os dentes, pareces risonho. 

Guardavas a massa cinzenta da matéria pensante que abrigavas, uma mente ofegante que mil sonhos sonhava. 

És o maior deboche dessa vã realidade, tu mostras o que há de vir. Oh, que maldade, de minha sorte estás a rir!

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ajuda-me


Senhor, ajuda-me
pois preciso de ti. 
Sem ti nada posso, 
auxilia-me, 
pela minha própria sorte temo e temi. 

Que hei de fazer 
se no juízo final me ver
e cheio de pecado estiver?
Quando minha humana ousadia para contra ti pecar, que nessa terra tive 
estiver exposta, quem de tua ira e justiça 
poderá me livrar? 

Os dias são curtos 
e talvez eu não esteja 
fazendo o que aos teus olhos é bem. 
Ó Senhor ajuda-me, 
por favor acuda, 
só tu podes e mais ninguém! 

Sim Deus, não me deixes errar conscientemente, 
tomar um mau caminho eterno, 
correndo descer para o inferno. 
Ensina-me a fazer a tua vontade, a única verdade! 

Ajuda-me Senhor 
a tomar o caminho da fé e do amor, 
dá às minha trevas luz, 
ilumina meu caminho Jesus, sim, ajuda-me 
pois só tu podes Senhor!

sábado, 21 de novembro de 2020

Muitas estradas, um só caminho

I

Num domingo ensolarado, uma bela senhorita passeia no parque, acompanhada de sua cachorrinha de estimação. Senta-se num banco, enquanto vê o movimento, aprecia a paisagem. Sem perceber, ela é observada com grande admiração por um jovem que se encontra a poucos metros de distância. Ele fica impressionado com sua beleza e elegância, e decide então abordá-la. Cria coragem, dá os primeiros passos. Um pouco tímido, ele avança. 

Começa falando do calor sufocante que está fazendo, comenta sobre como gosta de animais. A conversa flui e ele logo a convida para sair. Com um sorriso cativante, ela aceita. 

O encontro acontece. Eles passam agradáveis momentos juntos, que se tornam mais frequentes. Começam a namorar. Noivam e por fim casam-se. 

Desfrutam de uma felicidade que não pode ser expressa em palavras. Tudo vai bem, ambos se completam e se amam, mas ainda não estão satisfeitos. Precisam de algo mais. Algo que possa materializar e eternizar este amor que sentem. 

É aí que surge uma idéia brilhante: "Precisamos ter um filho!" Que maior prova de tão grande amor pode haver? Iniciam o processo. Sem muito esforço, alcançam aquilo que desejam. Uma nova vida foi gerada, o milagre da vida se repete, um novo ser foi concebido. Ele deverá dar alegria a seus pais, ele é tudo que eles sonharam.

II 

O menino cresce, é a alegria da casa e o orgulho dos pais. Elogiado pelos professores, é um aluno exemplar. Tira boas notas, é alegre e brincalhão, enérgico. Sua vida é só alegria. Até então...até que ele cresce e chega o momento de tomar suas próprias decisões e assumir o controle de sua vida.

III 

Nosso menino, agora moço, têm preocupações que são comuns às pessoas de sua idade. Somente ele pode entendê-las. Contudo, há um agravante: ele encontra um país devastado por uma crise econômica, o que para ele significa ter maiores dificuldades para conseguir um simples emprego. O jovem não possui, naturalmente, nenhuma experiência profissional, o que dificulta-lhe em demasia. 

Ele sente-se frustrado, decepcionado, desesperado. Até pouco tempo atrás ele fazia tantos planos, tinha sonhos, e todos foram perdidos de uma só vez...A realidade não é de longe o que parece ser, só quem está dentro sabe como realmente é. 

O rapaz questiona o porquê de tamanha injustiça. Clama aos céus, sem resposta. Ele só queria ter uma vida comum, como todas as pessoas, mas até o básico tornara-se difícil para ele. Mesmo sabendo que não é o único em tal situação, isto não lhe traz nenhum consolo, apenas faz-lhe entender que não é sua culpa, é uma tragédia social e um drama coletivo. 

Ele tenta aceitar sua triste realidade, tendo esperanças de que um dia tudo melhore, ainda que esse dia pareça muito distante.

IV

Durante o longo período que passa parado, o rapaz começa a pensar e repensar várias coisas. Este tempo de ócio é como um hiato na transição da adolescência à vida adulta, um amargo e inesperado intervalo, um tempo propício à reflexão. O rapaz começa a questionar muitas coisas que antes não notava (apesar de estarem diante de seus olhos, nunca tinham tido tanta relevância como agora). 
Ele sente-se perdido em meio a seus pensamentos que o afogam cada vez mais. Quer livrar-se deles, mas não consegue...Não pode simplesmente fingir que nada está acontecendo. 

Mais cedo ou mais tarde esse momento ia acontecer, o desemprego apenas serviu para antecipá-lo. Quando tudo flui naturalmente sem maiores dificuldades, não há espaço para questionamentos internos e avaliações. Basta porém, que algo saia do curso da normalidade para que tenhamos que rever nossos valores, nossas crenças, nossos hábitos, nossos planos e até a nossa própria existência. 

É exatamente isso o que ocorreu com nosso rapaz. Se ele tão somente tivesse se formado e conseguido um emprego, tivesse saído da escola e logo estivesse trabalhando em uma empresa qualquer, sua vida teria seguido o curso natural, sem interrupções. Mas não foi isso o que aconteceu. De repente, tudo mudou: sua tranquilidade foi-lhe tirada no momento que sua rotina escolar acabou e ele não conseguiu um trabalho. Seus sonhos foram destruídos por um sistema cruel e desumano que não se importa com seus sentimentos. Seu futuro ficou incerto, sua própria identidade se viu abalada por essas repentinas e avassaladoras mudanças. 

Tudo tornou-se tão claro e ao mesmo tempo tão difícil! Nunca as palavras de Camus fizeram tanto sentido: "Começar a pensar é começar a ser atormentado".

V

Quando era criança, o rapaz via as penosas aflições da vida adulta como algo distante. Ele não entendia porquê seu pai vivia de "cabeça quente". Isso não fazia sentido para ele. Agora ele compreende perfeitamente o que seu pai sentia. Hoje é justamente a paz da infância que ele é incapaz de compreender: como tudo podia ser tão bom apesar das dificuldades? 

Não foi o mundo que mudou. O mundo foi, é e continua sendo o mesmo. É ele que cresceu e passou a entender o que antes não entendia. Até que ponto isso é bom, não se sabe ao certo. A única certeza que têm é de que nunca voltará a ser o mesmo. 

Sua nova percepção da realidade traz consigo novos desejos, necessidades e também responsabilidades. Isso o acompanhará pelo resto de seus dias. Este é o preço que se tem que pagar para ser senhor de si.

VI 

O rapaz se dá conta de que agora ele terá que assumir muitas responsabilidades que antes não lhe pertenciam. E que as escolhas que fizer irão ecoar por toda a eternidade...O sentimento que têm é de perplexidade. Ele não sabe o que fazer, apenas sabe que precisa fazer algo. 

Quando olha para o passado, sente saudades da época em que tudo era mais fácil e simples.Quando vê o presente esbarra em incontáveis problemas que tiram-lhe a paz...Quando pensa no futuro, o que encontra são incertezas, a dúvida se suas expectativas se concretizarão, se o amanhã será melhor que o hoje...Ele de fato não têm certeza de nada, a não ser de que tudo é incerto. Vive em um mundo de infinitas possibilidades onde só uma é possível! Isso é o que lhe atormenta, não saber que rumo tomar, não saber qual é o melhor caminho a seguir. 

Chega um momento em que somos obrigados a tomar decisões, e não podemos fazer como Pôncio Pilatos, lavar as mãos e fingir que não é conosco.

VII

O rapaz sente o peso dos anos. Cada aniversário não é mais uma simples data, é um verdadeiro convite à reflexão. Embora seja jovem, ele sente o tempo escapar-lhe das mãos, numa marcha ininterrupta que não se pode parar. Todo o ano é reavaliado. O próximo aniversário é visto com leve temor: "Já tenho tantos anos"...

Ainda que no fundo saiba que sua inquietação é exagerada, já que como dizem, ele têm "todo o tempo do mundo", não há como evitar o incômodo. O rapaz vê-se obrigado a assumir suas obrigações como adulto (das quais ainda estava isento quando adolescente), e vê sua infância ficar cada vez mais distante, convertendo-se em um tesouro bem guardado no baú das lembranças do qual é sem dúvida a melhor de todas as recordações.

VIII 

O rapaz sente-se profundamente angustiado. Lhe custa muito aceitar que a realidade que vive atualmente é a mesma que viverá para sempre. Isso é, mesmo que seus problemas sejam resolvidos, novos problemas surgirão. É um ciclo que se repetirá e não tem como fugir. "Então a vida é isso?", indaga-se. A resposta é sim! 

Por muito tempo ele acreditou numa mentira. Fizeram-lhe crer em ilusões. O choque de realidade ocorre, ele está só neste processo. Ninguém pode ajudá-lo, essa é uma guerra que terá que lutar sozinho.

IX

Talvez seus pais não soubessem o que estavam fazendo quando o trouxeram à vida. É provável que não tenham refletido com seriedade nas consequências desta decisão. Por um simples capricho, egoísta e impensado, deram a luz a um ser que sofre e não entende qual a sua finalidade nesse jogo. "Eles não deveriam ter feito isso comigo", pensa. "Eu não precisava estar passando por isso". 

O jovem sente então uma imensa raiva por tudo e por todos. Promete a si mesmo que jamais repetirá o erro de seus pais, que nunca ousará perturbar o sossego de quem quer que seja. Que nunca em seus momentos mais alegres e impulsivos se atreverá a criar uma nova vida que terá que sofrer como ele está sofrendo. Nunca! "Eu não quero perpetuar o ciclo da dor, não quero contribuir com o sofrimento". Decide que não terá filhos. 

Não há necessidade de gerar um novo ser que terá de chorar, sofrer...tudo a troco de nada! Apenas para que seus pais possam orgulhar-se de ter formado uma família, apenas para que vejam o resultado de seu experimento..."Ele se parece tanto com o pai"! "Não, é a carinha da mãe!" 

Ele entende o que poucos conseguem entender: o maior gesto de amor de um pai para com o filho é não trazê-lo ao mundo! "Se eu sei que meu filho terá de passar por tudo isso, sei que ele vai sofrer e que talvez não possa ajudá-lo, porque o colocarei no mundo? Qual a lógica de tirá-lo da inexistência e trazê-lo para um mundo que nada melhor tem a oferecer?" 

O nobre rapaz não consegue encontrar nenhuma resposta satisfatória à essa pergunta, e se convence de estar tomando a melhor decisão, embora geralmente não seja compreendido.

X

Contudo, ele decide não culpar seus pais. Ele sabe que o que fizeram, o fizeram com a melhor das intenções. Só queriam o seu bem. Só queriam dividir a alegria que tinham com ele, compartilhar bons momentos com sua cria. Eles não têm culpa pelas coisas ruins que lhe aconteceram, muito pelo contrário, sempre o ampararam nos momentos difíceis. De fato, eles não têm culpa de nada. 

Apesar de entender isso, o rapaz segue insatisfeito. Sua insatisfação é visível, seus pais se compadecem, tentam ajudá-lo. Ele procura tranquilizá-los, "está tudo bem", diz. Mas no íntimo ele sabe que não está.

XI

É incrível como escolher pode ser algo tão difícil. Kierkegaard dizia que "Existir significa escolher, mas isso não representa a riqueza, mas a miséria do homem". Sem dúvida ele tem razão, já que o homem vive em um estado de indecisão permanente, tendo a possibilidade de 'sim' e de 'não' sem possuir qualquer critério seguro. Ele tem diante de si várias propostas, muitas alternativas e não pode saber qual a melhor até que decida escolher. Uma vez escolhendo, terá de lidar com a dúvida se fez a escolha certa ou com a insatisfação com a escolha feita. E para que possa escolher outro caminho, precisa abandonar o que está, o que significa abrir mão do que conhece e abraçar o desconhecido. 

Tendo abandonado seu caminho antigo, ele poderá dar-se conta de que estava bem antes e que não percebia isso. E talvez ele não consiga voltar e deva carregar a angústia de ter feito uma escolha errada. Mas como ele saberia que a decisão que tomou é ruim se não tivesse se atrevido a tomá-la? Como disse Albert Camus: "Não se pode criar experiência, é preciso passar por ela." É como se disséssemos: "Eu preciso ver com os meus próprios olhos". E nessa ânsia de tirar suas próprias conclusões, o homem ignora os avisos, os alertas que aqueles que já viveram mais que ele tem a dar. 

Torna-se necessário sentir a mesma dor, passar pela mesma aflição para poder dizer: "Vocês tinham razão." Isto acontece com todos, e não podia ser diferente. Como ser livre que é, o homem está a condenado a cometer erros e sofrer com as consequências destes erros. "Viver é isto, ficar se equilibrando o tempo todo entre escolhas e consequências". Bela frase de Sartre, ilustra bem a questão. 

É precisamente esta a angústia de nosso jovem, que tenta encontrar seu rumo e assumir seu papel, mas não sabe qual escolher. Ele teme fazer escolhas erradas e se arrepender, mas também teme não escolher e vir a arrepender-se de não ter escolhido nada. Ele não poderá saber o que é bom se não ousar experimentar, mas se a sua escolha for má, terá que arcar com as consequências. Este ciclo se repetirá eternamente, sem que seja possível escapar dele. 

"Eu não deveria ter feito isso, não devia ter dito aquilo"...É irracional culpar-se por erros antigos, se o homem está obrigado a tomar decisões e não pode fugir de suas consequências...Mas o homem sempre viverá com a inquietação de que poderia ter feito mais, ter sido mais, ou talvez o oposto, a aflição de ter feito, sido mais do que precisava. A angústia é permanente. Nunca sabemos que decisão tomar e por vezes não estamos satisfeitos com nossas escolhas. 

O jovem têm consciência deste dilema, e isto o aflige grandemente. Ele quer conhecer a verdade, mas pergunta-se: "Qual a verdade se todos dizem estar certos em suas convicções?" A impossibilidade de saber o que é certo, o que é ético, o que é moral, o que é verdadeiro em um mundo onde todos dizem ter razão e carregam diferentes verdades é o que apavora! Ele não sabe quem tem razão, e a menos que se atreva a tomar partido, não poderá saber.

XII 

O rapaz não sabe que caminho seguir. De fato, ele têm uma vida e não sabe o que fazer com ela. Está ciente que não pode fugir das decisões, pois como disse Sartre: "Eu sempre posso escolher, mas devo saber que se não escolher, ainda estou escolhendo." 

"Há muitas estradas e um só caminho...qual devo seguir?" pergunta-se. Seu coração lhe diz: "O que você achar melhor." Ao que responde: "Melhor? O que é melhor para mim pode não ser para minha família". O coração novamente responde: "Apenas siga-o. Eles podem lhe dizer o que é melhor, mas talvez o melhor deles não seja o melhor para você." 

O rapaz hesita. "Como assim? Sempre me disseram o que eu devia fazer. Eu não posso simplesmente contrariá-los." O coração afirma calmamente: "Você não está cometendo nenhum crime. Se dizer o que pensa e se negar a aceitar coisas que lhe parecem absurdas é ofensivo para os demais, ofenda-os, mas não permita que governem os seus atos. Você só têm uma vida e ninguém vai vivê-la por você." O rapaz pensa: "O coração têm razão."

XIII

Acontece, porém, que seguir o coração nem sempre é o melhor a ser feito. O rapaz se encontra desiludido e sem esperança, deixar-se levar pelas emoções pode ser perigoso. "E se eu simplesmente quiser acabar com tudo? Quem vai me impedir?" Ele reflete: "Eu não tenho nada a perder. Só preciso de um pouco de coragem e pronto." 

Um filme passa pela sua cabeça. Lembra-se de sua vida, desde os primeiros anos até o momento presente. Faz um balanço das experiências negativas que teve e pensa no que pode ocorrer no futuro. "Não sei o que fazer, estou perdido, se eu desse um fim nisso agora tudo seria mais fácil". O rapaz percebe que não têm essa coragem fatal. Ele entende, respeita e até admira os que ousaram fazer o que ele não se atreve. 

"Isso não é pra mim. É melhor suportar o que tiver que suportar, não tenho outra opção." O jovem desiste do gesto extremo. Ele sabe que tudo seria bem mais fácil se simplesmente não tivesse nascido, mas agora que existe e é um ser, não pode sair de cena assim tão fácilmente, não pode fugir sem causar algum impacto em seus entes queridos. 

Ele não quer manchar sua biografia. E a não ser que deixe de se importar com as consequências de seu ato, decida romper com a ética e ultrapasse os limites da razão, deixando-se levar totalmente pela emoção, ele não será capaz de conseguir o que quer. Isto é, a única maneira de dar um fim à seu sofrimento é permitindo-se arrastar por esse desejo destrutivo, que pode ser libertador. Mas ele não sabe se isso é realmente o melhor. À primeira vista parece ser. "O que eu ganho com isso? Nada. O que eu perco com isso? Nada." Mas o ato não pode ser nulo. O rapaz está ciente de que não há volta, e que uma vez feito, não há espaço para arrependimento. Ele percebe então que não está disposto a se arriscar. Prefere continuar correndo os riscos do que conhece a atrever-se a enfrentar o desconhecido. 

Ele está desesperado, mas ainda assim não têm as qualidades suficientes para dar um salto definitivo em meio ao desespero. "Como eu queria, num transe arrebatador, desvairado e atrevido, dar um fim à minha dor, oh, como eu queria em um ímpeto acabar com tudo!" 

O rapaz gostaria de ter essa transgressora coragem, essa ímpia valentia. Mas, no fundo ele sabe que não a possui. Decide então não pensar mais nisso, custe o que custar, mesmo que a pressão aumente e pareça não haver outra saída. 

"Este gesto é de fato nobre, mas não sou digno de tamanha nobreza", conclui.

XIV

Uma vez descartada a fuga, restam outras opções a serem consideradas. Uma delas e talvez a mais comum de todas, é aquela em que o ser busca ligar-se a um ser superior, divino e eterno. O físico une-se ao espiritual, o finito ao infinito, o terreno eleva-se até o céu. O jovem decide entregar-se plenamente à religião. "Eu preciso de uma razão para viver, Deus é essa razão." 

O rapaz começa a frequentar os cultos. Pouco depois, batiza-se em uma igreja evangélica. Sua família alegra-se muito. Seu semblante tornara-se sereno, finalmente o jovem encontrara a paz. Ele está irradiante. As coisas nunca tinham sido tão fáceis para ele como eram agora. Ele podia explicar tudo, tinha respostas para todas as coisas. Tudo podia ser justificado e entendido à luz do livro sagrado. Não tinha porquê sofrer. Bastava crer e entregar suas preocupações, Deus cuidaria de tudo. 

O jovem toma a iniciativa de ler a Bíblia. Quer conhecer melhor a palavra do Senhor. E é o que se propõe fazer, empolgadamente. Ele inicia a leitura. Lê tudo, atentamente. Alguns textos lhe chamam a atenção, não consegue entendê-los. "Não devo questionar, só crer", diz consigo mesmo. Porém a perplexidade continua. "Como pode ser isso? Realmente não entendo." 

O rapaz não quer admitir suas inquietações. Por muito tempo, abafa, silencia, finge não ver o que está vendo. Não lhe é conveniente querer saber mais do que precisa. Mas o desconforto permanece. Suas dúvidas crescem sutil e fortemente e não há quem as explique de maneira honesta e satisfatória.

XV

Com grande relutância, o rapaz aceita que este também não é o melhor caminho, pelo menos não para ele. Ele queria crer, ele tentou crer, ele se esforçou para crer, mas não conseguiu. Por não ser capaz de entender certas coisas que para muitos não passam de simples detalhes mas para ele têm importância crucial, este não é o seu caminho. Pode ser o melhor para seu pai, sua mãe e principalmente sua irmã, mas não para ele. 

"Como eu gostaria de ser como minha irmã, tão cheia de fé! Ela sim é sábia, não eu! Ela está no caminho certo, como eu queria estar nessa sintonia!", observa. "Sou demasiado confuso, crítico, questionador. Não posso fechar os olhos e me jogar de cabeça, não posso me lançar assim sem medo, abraçar o escuro com calma e serenidade. Não consigo dar o salto!" 

O rapaz sabe que tudo lhe seria bem mais simples se ousasse dar o salto da fé. Ele teria uma razão sólida para viver, um motivo que nenhuma tormenta mundana, nenhuma perturbação poderia abalar. Ele deseja fortemente ter essa confiança, essa determinação, essa força, essa fé. O rapaz admira os que encontram refúgio no invisível, no puro, no incognoscível, no eterno. Mas admite que sendo honesto consigo mesmo e leal a si próprio, essa bela alternativa não é para ele.

XVI

Søren Kierkegaard enfatizava bastante a angústia e o desespero humano. Com toda a razão! São sentimentos que todo indivíduo conhecerá um dia, e terá que enfrentar sozinho. O rapaz que aqui tomo como exemplo não é um herói, mas um modelo das amplas e variadas gamas de sensações que um homem pode experimentar. Humano, demasiado humano, como dizia Nietzsche. 

As maiores e mais profundas revoluções ocorrem por dentro, não por fora. As maiores guerras são as que travamos com nós mesmos e após árdua peleja saímos vencedores. São essas batalhas as que lutamos sem que ninguém veja e as vencemos sem que alguém perceba. Todos já passamos por isso; Há coisas que só nós podemos fazer. 

Nosso rapaz encontra-se em desespero. O desespero de não querer ser ele mesmo. E, em parte, o desespero de querer ser ele mesmo. Kierkegaard assinala ambos como sendo comuns ao homem, com bastante precisão. 

Em sua angústia o rapaz não quer ser ele próprio. Sente vergonha: "Sou um péssimo filho, meus pais não mereciam isso." Ele se cobra atitudes que não pode dar. Ignora ter feito o melhor que pôde. Carrega um peso que não deveria carregar, mas que tomou para si. 

No desespero de querer ser ele próprio, tenta ao máximo construir uma identidade única. Porém choca-se com os valores e tradições aprendidos pela família, valores nos quais não consegue se adequar e teme negar. Ele quer ser ele próprio, mas não pode fazer isso sem destruir a imagem quase canônica que fizeram dele. 

Sua maior angústia é não saber a quem ser fiel. Ele não quer frustrar as expectativas de seus pais, familiares e amigos, mas tampouco quer continuar vivendo uma mentira. Cedo ou tarde terá de escolher a quem obedecer, se às vozes que vêm de fora lhe dizendo o que fazer, ou à voz do coração que ele teme ouvir e finge não escutar.

XVII

Muitas dúvidas passam pela cabeça de nosso rapaz. Seus pais, constantemente o vêem pensativo, absorto em suas idéias. Preocupam-se com o estado de espírito do filho, querem ajudá-lo, mas sentem que não podem fazer nada. O rapaz sente-se péssimo por estar nesta situação, não queria estar assim. Tenta pensar nas pessoas que sofrem muito mais do que ele, pessoas que não têm o que comer, não têm um teto para dormir, não têm um lar. Pensa nos deficientes, nos órfãos, nos que lutam para sobreviver em um leito de hospital..."Eu não deveria me queixar. Eu não sou tão miserável assim, se comparado a algumas pessoas sou um privilegiado..." Isso é o que repete a si várias vezes, tentando confortar-se com tais palavras. No entanto, elas não mudam sua frustração, a grande insatisfação que sente. 

Ele queria poder expressar sua raiva, sua revolta, sua indignação, mas não há como fazê-lo. As coisas são como são e não se pode mudá-las. E é justamente isso o que o incomoda. "Porquê tem de ser assim?". Por mais que pense, não consegue entender, seus raciocínios andam em círculos sem chegar à uma conclusão satisfatória. 

Nunca o mundo lhe pareceu tão cruel, nunca a vida lhe pareceu tão injusta, nunca a realidade lhe pareceu tão assustadora! Ele abriu a caixa de Pandora, comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal, ousou roubar o fogo sagrado dos deuses. Está pagando o preço por este saber elevado, está se afundando nos abismos do nada, confrontando o absurdo. Ele quer encontrar uma forma de lidar com isso e precisa descobrir sozinho.

XVIII

O momento não poderia ser mais propício à reflexão, a auto-análise; o cenário é perfeito para o desencadear de uma crise, é como se o universo inteiro, os deuses e a fortuna tivessem feito um pacto e de maneira sórdida e zombeteira houvessem tramado contra o nosso pobre rapaz: "Vejamos como ele reagirá". Suas forças tiveram de ser testadas. Sua resiliência foi posta à prova; sua sanidade ficou em jogo, suas emoções instáveis. Sua angústia, com bastante fundamento, foi elevada à enésima potência. O jovem se encontra no olho de um furacão, no meio de uma tempestade, está atravessando um deserto sem saber se achará um oásis no final. 

O rapaz têm 24 anos, está desempregado em meio a uma grave crise econômica agravada pela pandemia de Coronavírus. Está de fato, vivendo dias absurdos que nem mesmo em seus piores pesadelos poderia imaginar! E não há muito o que fazer, é como se estivesse a mercê da sorte. Sua irmã está prestes a se casar e se mudará para uma cidade distante. Ele está feliz com a alegria da irmã, mas extremamente insatisfeito com as circunstâncias que este casamento ocorrerá. "Eu devia estar ajudando nas contas de casa, devia estar contribuindo, sendo útil...Tantos anos morando em uma cidade grande e nunca consegui um emprego..." Sua irmã ajudava com as despesas de casa, mas com o casamento sua ajuda acabará, e o rapaz sente-se humilhado por não poder ajudar, mesmo sabendo que isso não depende só dele, alguém precisa lhe dar uma oportunidade. 

"Eu só queria um trabalho, nada mais. É pedir muito?", pensa. Para piorar, há a possibilidade de que o rapaz tenha que voltar a morar no interior. Isso pode ocorrer caso seu pai sozinho (sem ter mais a ajuda da filha) não consiga arcar com as despesas (aluguel, alimentação, contas) e decida voltar a morar na cidade pequena onde sua família têm casa própria e é também onde o rapaz sofreu Bulliyng, e possui péssimas recordações. Isso é tudo o que ele não quer! Mas sem perspectivas de arrumar trabalho e ajudar nas contas, o risco não pode ser negado. 

"O que aconteceu, até pouco tempo tudo era diferente, porque agora é tão difícil? Quando isso terminará?", pergunta-se. Ninguém sabe ao certo. É preciso paciência, não há outra opção.

XIX 

O rapaz aventura-se em uma vida desregrada. Tenta encontrar felicidade no prazer. Sem escrúpulos morais, deveres religiosos e amarras éticas, procura dar atenção à seus instintos corpóreos e realizar plenamente o que lhe ordenam seus sentidos. "Nada pode ou deve ser negado", pensa. "Eu devo me dar por satisfeito com o que tenho de concreto, aproveitar o aqui e o agora, não me ater a esperanças vãs e crenças infundadas que só servem para me enganar e tiram o foco do que há de belo e alegre, me impedem de desfrutar do que é palpável e seguro, e me prometem alegrias que não posso ver muito menos sentir!"

O prazer é recompensado em si mesmo, não precisa durar para sempre. "O que há de errado em gozar das alegrias da vida e querê-las em toda sua plenitude?", diz. "Não há nenhum crime em aceitar a natureza, abraçá-la e vivê-la! Eu não quero estar em uma constante luta comigo mesmo, por não me aceitar como sou! Quero simplesmente celebrar a vida tal como ela é, desfrutar de toda suas delícias! Apreciar o que meus olhos podem ver, saborear o que meus sentidos podem dar!"

O rapaz irradia uma espontânea alegria. O prazer é seu foco, buscá-lo
passa a ser sua razão de ser! 

A euforia não duraria muito. Desde cedo, o jovem percebe que o prazer nada mais é que satisfação imediata, não felicidade. Que ele não pode dar nenhuma alegria permanente se em sua natureza, consiste em um gozo temporário. E que toda vez que esse gozo temporário acaba e essa satisfação se realiza, o que fica é o vazio, este sim é permanente. Cada tentativa desesperada de preenchê-lo é vã, é ilusória. Ao perder-se o objeto da satisfação imediata, este buraco cresce, acentua-se mais. O prazer também não o preenche.

XX

Viver nunca foi fácil para ninguém, mas para algumas pessoas costuma ser ainda mais difícil. Tal ocorre com aqueles que possuem um coração sensível, uma alma frágil e um olhar atento as vicissitudes do meio que o cerca. Como disse Schopenhauer: "Quanto mais elevado o espírito, mais ele sofre." 

O rapaz não teve uma vida fácil. Não nasceu em berço de ouro, nunca teve quem o patrocinasse. Nunca foi bancado por ninguém, tudo o que conquistou foi por esforço próprio. Desde pequeno teve de enfrentar os prejuízos causados pela limitação econômica. Suas asas foram cortadas pela escassez de recursos que o impediram de voar. 

Apesar disso, teve uma infância feliz. Na adolescência, a timidez o atrapalhou e o impediu de viver muitas coisas. Quando adulto, o jovem vê seus sonhos e anseios se frustarem e serem congelados pelo desemprego. Raiva, tristeza, frustração...os sentimentos se misturam. Não, definitivamente ele não é um mimado, ingrato e egoísta. Ele é um guerreiro, é mais forte do que imagina. 

Amante da arte, o jovem encontrou nela um consolo. "Temos a arte para não morrer da verdade", diria Nietzsche. O rapaz fica admirado toda vez que se depara com uma obra que descreve algum sentimento que vivenciara. É como se o artista estivesse lendo sua alma! Vê-se representado em tais obras, o que faz crescer sua admiração para com o artista que a compôs. É um verdadeiro deleite para seu espírito, um momento único e transcendental. 

O rapaz pretende conhecer mais e mais desse universo fantástico. Quer fundir-se nele, tornar-se parte dele, e deixar-se levar por ele. É assim que poderá tranquilizar sua aflita alma.

XXI

O rapaz finalmente entende que não encontrou seu caminho, e que talvez nunca o encontrará. Por mais que tenha tentado, não conseguiu achar uma solução para o problema de existir. Não que existir seja em si um problema, a questão são as condições disponíveis para exercer a existência. Elas não lhe parecem justas, mas o que pode fazer, senão aceitá-las? De fato, nada, a não ser se queixar. 

Não devemos surpreender-nos com as indagações do jovem. Todos em algum momento já as tiveram ou terão. Cada um tenta solucioná-las à sua maneira, o ponto comum é que ninguém consegue escapar de passar por tais indagações. 

"Eu não pedi para nascer, não pude escolher o país, a família, a época nem o sexo em que nasceria. Eu não sou uma folha de papel em branco como disse Locke, pois muitas características que tenho foram herdadas de meus pais e alguns parentes. Minhas condições econômicas não são das melhores, o que significa que terei de lutar muito para sobreviver. 

Eu não sei se Deus existe e tampouco posso provar sua inexistência. Não sei qual é a melhor maneira de viver se existem várias e cada um escolhe uma forma diferente. Não sei qual é a verdade em meio a tantas opiniões, conceitos e definições. Como posso saber o que é certo? A única certeza que tenho é que um dia morrerei, mas também não sei quando. Eu só tenho uma vida que pode acabar a qualquer momento! 

As religiões me ameaçam com um inferno enquanto me prometem um lugar no céu. Contudo, eu não tenho como saber se essas coisas existem antes de morrer e se quiser acreditar nelas terei que renunciar a muitas coisas boas, alegres e prazerosas em prol de crenças que não se podem provar. Terei de abrir mão da vida que tenho que apesar de não ser perfeita, é o único bem que possuo, a única existência que conheço! Se abro mão de tudo e dou o salto da fé, posso ganhar muito com essa escolha. Um gozo celestial e eterno me esperam! Mas, se este paraíso não existir e tudo não passar de uma farsa, eu terei aberto mão de todas as alegrias e prazeres mundanos a troco de nada! Serei uma simples comida de vermes como todos os demais. Terei tido preocupações vãs e perturbações idiotas!

Mas se estiver errado, esse céu e inferno existirem, e eu em minha cega arrogância e obstinado desdém, eu ousar desprezar tão preciosa dádiva, infinitamente superior a qualquer paixão que aqui possa ter, se eu, oh, cego e louco seguir a multidão em tamanho ultraje, serei culpado de um crime imperdoável! Quem poderá salvar-me das mãos de Deus, das eternas chamas de sua ira? Quem me livrará de sua justa vingança? 

Oh céus, não sei o que escolher! Há tantas estradas e um só caminho...Como poderei saber? 

Todos me dizem o que fazer, mas ninguém o fará por mim! Todos querem me ensinar a viver, mas ninguém viverá por mim! 

Muito em breve serei um ancião, meu corpo vai debilitar-se, minha saúde também! E o que terá sido de mim? Terei aprendido a amar, perdoar, a ter paciência? Serei um ser humano melhor? Conseguirei sorrir e agradecer me esquecendo de meus problemas? Terei evoluído ou continuarei sendo o mesmo? Que lição poderei tirar de tudo isso? E se a história terminar sem nenhuma lição?"

O rapaz ocupa-se com estas questões. Para ele, elas não são detalhes irrelevantes mas fundamentais, que podem determinar muito em suas decisões.

XXII

Para o rapaz, não há dúvidas de que tudo seria muito mais simples se ele não tivesse nascido. Para ele, não faz sentido existir em um universo assim, viver em um mundo onde existem infinitas possibilidades e só uma é possível. Onde há muitas estradas e um só caminho. Onde são propostas várias alternativas e só uma é de fato a melhor...Muitas opções e só uma é a correta, a verdadeira, a certa...Não existe negociação: Ele deve fazer escolhas! Ser ele mesmo e ser fiel a si ou ser o que querem que ele seja e mentir a si próprio... 

O rapaz entende que não pode ter todas as respostas e que seria uma grande pretensão sua querer saber tudo. Talvez esta seja a questão: o prazer não está em saber tudo, mas em aprender um pouco a cada dia. Ele decide abraçar este mistério, viver essa aventura, experimentar essa realidade. Decide não se deixar levar por excessivas e banais preocupações, e nem se preocupar com a qualidade das experiências. Quantidade pode não significar qualidade, mas representa um número maior de oportunidades oferecidas. 

O rapaz está ciente de quem ele é. Não precisa mais se preocupar com as opiniões dos demais, ele é exclusivo, é único! Sabe bem do seu valor. Ele entendeu que aconteça o que acontecer, não é menos homem, não é um ser humano inferior se não fizer o que os outros fazem: ele têm suas próprias leis! 

Não há porque se preocupar com o futuro. Mesmo que se façam planos, nunca se poderá ter certeza se esses se concretizarão. Também não é necessário entender tudo, apenas sentir. Porque tentar entender tudo? O jovem não perderá sua tranquilidade com isso. Ele não é Atlas para sustentar o peso do mundo em suas costas! Mesmo que seja incapaz de entender muitas coisas, isso não o impede de sentí-las e aproveitá-las. 

Talvez ele esteja certo e nada disso faça sentido. Mas que importa? Abraçar o absurdo é dizer sim à vida. Não há explicação, não há lógica, não existe uma fórmula mágica. Respostas prontas não valem. Tudo não passa de uma grande incoerência. E é justamente isso - a falta de sentido - o que torna a experiência mais interessante, mais fascinante, convidativa. 

"Quem sou eu nessa história? Não sei, apenas exerço o meu papel", reflete o rapaz. 

"Nem tudo precisa fazer sentido, nem tudo precisa ter lógica. Somos todos navegantes nesse imenso oceano, sem bússola, sem mapa, procurando um tesouro que não sabemos se existe, temendo monstros imaginários! Nos alegramos com a música, a dança, a comida. No fim das contas não é o destino que importa, mas a travessia. Não é a resposta que nos satisfaz, mas o caminho que percorremos para chegar até ela."

Assim reflete o rapaz. Ele não sabe qual é o caminho certo, e não se preocupará com isso. O prazer não é descobrir, mas procurar, e nessa busca aprender sempre mais, pois como disse Kierkegaard: "A vida não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser experimentada."


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Bastidores

Dispense o seu dinheiro, 
ele não pode me ajudar. 
Guarde suas belas palavras, 
já conheço este discurso inteiro, e sei muito bem como isso vai terminar. 

Eu estou em pedaços 
e não posso me recompor. 
Adoraria seguir seus passos, 
ir aonde você for. 
Mas o meu caminho será diferente 
e igual ao de muita gente, 
lhe peço, não me acompanhe, por favor. 

Somos autores da nossa história, senhores de nosso destino. 
A cada um coube uma parte nesse espetáculo, 
essa tragicômica arte. 
Você é o ator por detrás da cortina, lhe espera o fracasso ou a glória. 

O que você passou nos bastidores ninguém sabe,
ninguém soube. 
Suas lágrimas, risos e dores ali ficaram. 
Mas já passaram, 
caíram nesta viagem. 
Ei, já chega! 
Não vamos borrar a maquiagem.

sábado, 14 de novembro de 2020

O homem que não trabalhava

Desperta mais um dia 
sob a luz matutina. 
Não sabe para onde ir 
nem o que fazer, 
sua rotina é não ter rotina. 

A cabeça está cheia 
e a carteira vazia. 
Falta-lhe dinheiro até pra uma meia, 
que dirá para aquela peça 
que na vitrine viu 
e comprar tanto queria! 

Sai para entregar seu currículo,
na primeira empresa que aparecer. 
O que vier serve, 
repositor, faxineiro, frentista, não pode escolher. 

Fica atento ao telefone 
como um fã no aguardo do artista. 
Não pode crer que sua espera é vã, 
não vão chamá-lo à uma entrevista. 

Cada dia de ócio
é um péssimo negócio, 
desperdício de um bem 
tão importante e precioso, 
o seu tempo valioso. 
Lhe dói passar cada instante 
numa inércia angustiante.

Tenta convencer-se de que tudo isso vai passar 
e que sua hora vai chegar. 
Esquiva-se de amigos e parentes, 
sabe que irão perguntá-lo 
sobre sua situação, 
irão lhe indagar, mas não ajudar.

Passa a maior parte do tempo em casa, 
triste e desanimado. 
Embora saiba que não é o único neste quadro, 
o sentimento de culpa persiste, permanece angustiado. 

Surge uma oportunidade, ele levanta-se, vai atrás, todo empolgado. 
Comparece à entrevista, 
faz o melhor que pode. 
Dias depois recebe uma ligação, 
ansioso atende,
crendo ter sido selecionado. 
Mas não é o que pensava, 
sem explicação, fora rejeitado. 

O homem se entristece, 
o semblante empalidece. 
Percebe que sua dor não é só um momento. 
Desiste de procurar aquilo 
que sabe que não vai encontrar, cai no desalento. 

As horas se transformam em dias, 
os dias em semanas, 
as semanas em meses, 
os meses em anos. 
Muitas vezes, de lágrimas
 se adornam
esses tempos que se perdem e não retornam, as horas livres e insanas. 

O homem se desconhece, 
já não sabe mais quem é. 
Seu corpo enfraquece, 
sua mente enlouquece, 
entra em crise de identidade, e no futuro perde a fé. 

Olha para a janela, 
vê o movimento da cidade. Sente-se perdido, 
abandonado e excluído. 
É mais uma segunda-feira, para muitos um dial normal e patético, mas não para ele, um desempregado. 

Ele resigna-se à seu triste estado. 
O homem então aceita sua nova realidade,
tornara-se um animal doméstico.

sábado, 10 de outubro de 2020

Cronos

Não podemos voltar ao passado, nem prever o futuro. O único tempo que temos é o que chamamos presente. O passado é visto como uma página virada, uma experiência vivida e superada. O futuro é algo distante, nele projetamos nossos desejos e esperamos ver nossos sonhos realizados.

Se não estamos satisfeitos com o presente, apostamos nossas fichas no futuro ou desejamos voltar ao passado, retornar ao período em que éramos felizes. Tentamos escapar do nosso estado atual, seja buscando consolo num tempo que ainda não chegou ou nos refugiando nas agradáveis recordações de um tempo passado.

O tempo sempre será nosso maior adversário, nossa maior preocupação. "Não tenho tempo a perder", "Isso é perda de tempo", "Tempo é dinheiro". Queremos aproveitá-lo da melhor forma possível, e nos desesperamos quando vemos que ele segue sua marcha velozmente, altivo e soberano, sem se importar com nossas queixas, carências, anseios, inquietações!

Quando conquistamos aquilo que sonhamos sem demora e sem maiores dificuldades, o tempo corre a nosso favor. Porém, quando não obtemos o que desejamos dentro do prazo estimado, o tempo corre contra nós. Sua velocidade torna-se assustadora. Cada segundo, minuto, hora, dia, semana, mês, ano perdido é como se fosse um tempo desperdiçado, jogado fora, que não volta. Nos aflige vê-lo passar sem termos feito, conseguido, obtido aquilo que almejamos. E, obviamente, não podemos pará-lo até conseguirmos o que queremos. Temos que ir contra ele, como um herói que têm poucos segundos para desarmar uma bomba e evitar uma grande explosão.

Devemos seguir o curso do tempo, como uma folha que se deixa levar pelas águas de um rio. A folha não sabe para onde será levada, mas vai. Não sabe que obstáculo terá pelo caminho, se um toco ou uma pedra poderão detê-la, mas avança. O mesmo acontece conosco: não sabemos o que virá pela frente, mas seguimos, nos deixamos levar.

Temos a sensação do quanto percorremos ao olharmos para trás, e do quanto ainda falta percorrer quando olhamos para frente. Somos um ponto negro em meio a um imenso quadro branco. Um lapso de consciência, sensações, emoções que toma forma repentinamente, saindo por um instante do buraco negro, do vazio, do nada no qual estivemos por toda a eternidade e para o qual voltaremos em breve.

Somos um milagre, uma estrela que brilha iluminando a escuridão da noite, até apagar-se e voltar a se perder nela.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O mártir sofredor

I

A triste, deplorável, mísera condição humana. O que dizer do homem? O que dizer da vida? O que diremos sobre tudo isso? Como conseguir suportar esta loucura sem mentir e enganar a si mesmo? Como somos capazes de prosseguir em nossa marcha rumo ao abismo, ao vazio, com tantos obstáculos pelo caminho? O que nos impulsiona a continuar, mesmo quando tudo vai mal? Como explicar essa eterna luta por nada?

Desde eras muitos antigas, há séculos, a humanidade vêm tentando entender sua existência, sua condição e propósito neste universo. Muitas e várias explicações foram dadas, cada uma à seu modo tentando dar um porque a várias perguntas, ou pelo menos respostas que aparentemente preencham tais lacunas.

Muitas questões têm intrigado o homem, como o mal, a dor, o sofrimento, a morte, a vida após a morte, a imortalidade da alma, mas acima de tudo: a sua própria existência. Mais importante do que descobrir sua origem, sua natureza, é entender sua finalidade. Qual o sentido da vida?

Muitas respostas à essa intrigante e fundamental pergunta têm sido dadas, partindo de diferentes perspectivas. Religiosos, pensadores, cientistas fazem o que podem para dar uma explicação plausível. Todos partem de um princípio: já que não se pode negar o absurdo da vida, deve haver um pretexto razoável para isso. Isto é, se a vida não possui nenhuma justificativa, deve-se encontrar uma boa desculpa para ela.

Uma vez que ninguém pode negar o sofrimento que existe neste mundo, cabe procurar uma razão, uma lógica pela qual valha a pena viver apesar do sofrimento.

II

O homem contempla a vastidão do universo enquanto se depara com a sua própria finitude. Vê o sol, a lua, as estrelas e não pode alcançá-los. Quer voar, mas não têm asas. Ele é grande demais para ser pequeno neste mundo e pequeno demais para ser grande neste universo infinito. É simplesmente mais uma das muitas criações do Criador, porém a mais complexa. É um ser intermediário entre os animais e os anjos, um elo entre o físico e o espiritual.

É também um poço de contradições. Apesar de suas limitações, têm em si mesmo uma poderosa arma para manter-se de pé, e superar a todos os obstáculos que se lhe apresentam: a inteligência. Através dela, pode construir arranhas- céus, enviar satélites pro espaço, desfrutar dos avanços tecnológicos, criar e apreciar a arte. Contudo, é doloroso ver que a despeito de tudo o que fizermos ou quão longe tivermos ido, ainda assim terminaremos como os animais, as bestas, os seres irracionais que subjugamos e nos cremos moralmente superiores.

Não é fácil aceitar que mesmo que cheguemos a pisar na lua, voar como pássaros, nada nos impedirá de um dia estarmos a sete palmos debaixo da terra. Um médico que encontra a cura para todas as enfermidades menos para a sua própria doença, com razão se sentirá frustrado.

O homem pode passear em volta da órbita terrestre, conquistar reinos, fundar impérios, escrever seu nome na história, mas jamais poderá ultrapassar os limites da sua própria natureza, por mais que queira muda-lá, ou principalmente negá-la.

III

Além da inteligência, há outro fator que nos diferencia dos demais seres vivos neste planeta ou talvez no universo: a consciência. O homem não apenas existe, como também sabe que existe. Diferentemente dos animais que são movidos, guiados e sobrevivem totalmente através de instintos, o ser humano têm plena consciência de sua existência e condição no mundo.

Ele conhece suas limitações, suas capacidades, seu potencial e fraqueza, mas principalmente, sabe de seu destino. Ele é o único que sabe de sua própria mortalidade, está ciente disso. É um fato com o qual está obrigado a conviver, quer goste quer não.

Isso a primeira vista pode parecer uma coisa boa, um trunfo, pois a melhor forma de se combater um inimigo é conhecendo-o. Tal seria o caso se o inimigo em questão não fosse invencível!

Quando se trata da morte não há remédio ou escapatória. O homem têm diante de si uma sentença irrevogável, uma pena que terá que cumprir. Um destino do qual não poderá fugir, apenas adiar, retardar o máximo possível. 
E o fato de saber disso é o que mais dói, aflige e perturba o coração humano.

IV

A consciência é para o homem uma faca de dois gumes: pode trazer-lhe alegria ou lhe proporcionar a mais profunda tristeza. Saber de sua condição no mundo e ter ciência de suas limitações pode ajudá-lo a buscar soluções para seus problemas, como também pode fazê-lo se sentir o mais miserável de todos os seres, justamente por conhecê-los e não poder mudá-los. Isto é, a consciência nos permite saber quem somos e quão miseráveis somos. A consciência que ilumina também mata!

Poderíamos indagar-nos se realmente existe alguma vantagem em sermos inteligentes, racionais e termos consciência de nossa própria existência. Seria isso uma vantagem sobre os animais? Um motivo para nossa felicidade ou a maior causa de nossa desgraça? Que lucro temos em conhecer nossas misérias se não podemos mudá-las?

Quando o homem se dá conta da realidade em que vive, das limitações que possui e das mazelas presentes no mundo, a sensação que têm é de angústia. Ter um problema que é incapaz de resolver, ver coisas ruins acontecerem consigo e seus semelhantes sem poder impedi-las ou amenizá-las, é como estar de mãos atadas.

O homem seria então o louco que sabe de sua própria loucura, um doente que sabe da gravidade de sua doença. Porém, para manter-se são, necessita de alguma forma crer que é saudável. O escravo necessita crer que é livre, pois ainda não aprendeu a suportar as pesadas correntes que o prendem.

V

Todas as ações humanas constituem-se portanto em uma forma de auto-afirmação. O homem precisa crer que é alguma coisa para poder suportar sua estadia neste mundo tão caótico e instável. Quando não possui forças suficientes para acreditar em si mesmo, deve crer em algo superior que possa ajudá-lo a sentir-se protegido durante sua jornada.

Uma vez que não se pode mudar a realidade do mundo em que vive, deve buscar uma forma de afirmar-se nele e assim sentir-se forte. Isso é, ter um título, diploma, posses, são formas de mostrar-se forte neste ambiente selvagem, como um predador que carrega a presa em meio aos dentes, dando claramente sinal de força à seus semelhantes, recebendo o respeito e a admiração dos mesmos.

O homem precisa se auto-afirmar para poder negar suas misérias. Cada gesto de poder, cada ordem de comando, cada demonstração de força, são simplesmente formas de negação, mecanismos de defesa que a mente humana encontra para não ter de admitir, reconhecer suas contradições e debilidade.

Isso nos lembra o texto bíblico de Gênesis 11, o relato da Torre de Babel. Deus frustrou os intentos daqueles homens audaciosos que queriam construir uma torre cuja ponta tocasse os céus. E por que tinham tal pretensão? Por que desejavam que seus nomes fossem lembrados e não fossem espalhados pela face da terra. Ainda hoje o ser humano quer tocar o céu, colonizar Marte, etc, apenas para não aceitar que seu nome será esquecido e espalhado por sobre a terra, engolido pelo tempo e a história.

VI

Analisemos agora a condição humana. Vejamos pois o absurdo que é o homem, ou mais precisamente a vida humana.
A vida consiste em resolver problemas. É simplesmente "uma luta pela existência com a certeza de ser vencido", como disse um célebre pensador alemão. Quase não há espaço para a diversão, a alegria e o lazer. Todo homem tem que trabalhar para viver, mesmo que viva para trabalhar. É necessário obter o sustento com muito suor, ainda que isso só sirva para prolongar o sofrimento que não há a menor pressa que acabe.

O homem tem de lutar pela vida, ainda que não a tenha pedido e desconheça seu significado. É preciso matar um leão por dia, mesmo sabendo que por mais leões que se mate, um dia o caçador será caçado, não importando o quanto conquistou até lá.

O começo de nossa existência é tão abrupto e repentino quanto nosso fim. Sem mais nem menos viemos parar aqui, e querendo ou não teremos que deixar este mundo. Não fomos consultados se gostaríamos de estar aqui. E agora que estamos, gostando ou não da idéia, teremos que ir embora. Mas e se eu gostar de viver? Não importa, morrerei da mesma forma.

É este período compreendido entre o nascimento e a morte, o grande problema que temos. Esse intervalo de tempo que denominamos "vida", a causa de nossas inquietações e dor de cabeça. É difícil para o homem entender que precisa sofrer numa curta vida que recebeu sem jamais ter requerido, ou quando feliz e satisfeito, ter que morrer. Esse dilema não têm solução aparente. Todas as soluções que são apresentadas são crenças, idéias, teorias, especulações, nada que consiga mudar nossa triste realidade: viemos pra esse mundo sem uma razão aparente, por um breve período sorrimos, choramos, amamos, sofremos, e por fim estamos fadados a desaparecer.

Sabendo que tudo pode terminar a qualquer momento, tão repentinamente como teve início, só nos resta tentar aproveitar o pouco tempo que temos, seja lutando por uma vida melhor depois desta ou fazendo o melhor para ser feliz (se possível) nesta vida, sem esperar nada no além, dando-se por satisfeito com esta existência absurda e contraditória, transformando-a em um tesouro e dando-lhe a cada dia um novo valor.

VII

Todos os nossos esforços são feitos na busca pelo prazer. Ou na procura por alívio. Tal como animais, somos guiados por nossos instintos, numa busca incessante por satisfazer nossas necessidades. Existem necessidades reais e básicas e outras supérfluas e descartáveis. Seja como for, somos dominadas por ambas, sendo as básicas as mais urgentes e que não podem esperar.

A maior parte de nosso tempo passamos empenhados nisto: procurando suprir nossas necessidades, tentando encontrar alívio para nossas dores e buscando prazer para nos sentirmos bem.

O problema que temos aqui é quando surgem barreiras que podem nos impedir de alcançar aquilo que queremos ou precisamos, sendo essas difíceis de superar ou contornar. É aí onde nasce a frustração. O desejo não cumprido, a necessidade não suprida decepciona e entristece. A sensação de impotência vêm, demonstrando que querer não é poder, e que às vezes até mesmo o básico, o essencial nos pode ser negado.

Estando cientes disso, possivelmente poderemos reagir de várias formas: nos sentiremos injustiçados e ficaremos paralisados diante dos nãos, as portas fechadas que recebemos. Tentaremos lutar até vencer, dando a volta por cima. Ou talvez decidamos não fazer nada, porquê cremos que não há nada que possa ser feito e se houver, não vale a pena o esforço.

VIII

O objetivo máximo da humanidade têm sido a busca pela felicidade. Mas levando em consideração as contradições, injustiças, instabilidade do mundo em que vivemos, é difícil acreditar que seja possível encontrá-la. Pelo menos não neste mundo, não neste sistema.

Há coisas que não dependem apenas de nós. Estão além de nossas forças. Há sempre um choque entre o desejo e a possibilidade deste se concretizar. Nesse interím temos os sonhos, a força propulsora que nos mantém vivos. Não importa se eles são factivéis ou não, nós precisamos deles. São cordas nas quais nos agarramos para não cairmos no abismo. Vivemos de sonhos pra que a realidade não nos mate!

O que antes foi dito sobre os obstáculos que se interpõe entre nossas metas e realizações, causando a inimiga máxima de nossa felicidade, a frustração, torna-se um grande problema quando esta é recorrente. Se a frustração de um sujeito se deve a fatores de fato fortes, verdadeiras barreiras que este possui e não dispõe de recursos para ultrapassar, sua queixa será justa.

Um escravo, por mais que deseje, dificilmente saberá o que é ser livre. Ele nasceu assim, viverá assim, e muito provavelmente morrerá assim. Para ele não basta apenas desejar ser livre. Se trata de ter nascido livre, ou talvez por graça e providência divina, ganhar a liberdade. Por si mesmo, ele não pode conquistá-la. O que lhe resta é sonhar ou resignadamente aceitar sua condição, uma vez que não pode mudá-la.

Essa é a mesma angústia que terá cada pessoa quando desejar algo e não puder obtê-lo, por estar amarrado, de mãos atadas, vítima da vida e refém das circunstâncias. Tal será a sensação de impotência que virá, fazendo-nos recordar o quão limitados somos ou a vida nos leva a ser.

IX

Há pois três grandes problemas na condição humana: a consciência que nos permite saber quem somos e quão miseráveis somos. O choque entre querer e poder, e as instabilidades e incertezas da vida. Poderíamos considerar a certeza da morte como um quarto problema, mas a existência de suicidas nos mostra que nem todos a vêem assim...Ela de fato poderá ser um castigo para o feliz, alegre e satisfeito como também um bálsamo, um alívio para o desesperado. Tudo depende do ponto de vista.

A consciência faz com que o homem se sinta refém, prisioneiro de suas próprias limitações. Conhecer sua condição é o equivalente a conhecer suas próprias misérias. Boa parte do sofrimento humano provêm daí. O homem sabe de suas limitações mas não pode mudá-las. É como um refém que vê seus entes queridos sendo rendidos, golpeados, roubados, sequestrados, sem poder fazer nada para impedir por estar na mesma situação: de mãos atadas. Ver a dor de nossos semelhantes e não poder ajudá-los é realmente frustrante.

O choque entre querer e poder é inegável. Quando temos um sonho ou um simples desejo e estes não se podem concretizar por causa da interferência de fatores externos, nossas limitações são trazidas à tona novamente. O homem percebe que não têm o mundo a seus pés, ao invés disso, o mundo o têm sob seu domínio. Ele não é livre para usufruir de plena liberdade como gostaria de acreditar. Muitos fatores podem intervir neste processo, favorecendo-o ou prejudicando. O que cabe ao homem é administrar os recursos que possui, lutar com as armas que têm, ser livre até onde sua liberdade o permite ser.

A vida que temos e o mundo em que vivemos são instáveis e imprevisíveis. Nosso futuro é tão incerto como o dia de amanhã: não sabemos o que esperar dele, e ainda assim fazemos planos e traçamos metas que esperamos cumprir. Não levamos em conta que eventuais obstáculos poderão surgir e precisaremos enfrentá-los. E quando isso acontece, somos surpreendidos e não sabemos o que fazer. Isso mostra que o homem não possui total controle e autonomia sobre a própria vida, e muitas vezes o que pode fazer é adaptar-se, conformar-se com as circunstâncias.

Isto fere frontalmente o ego e orgulho humano, demostrando mais uma vez sua fraqueza e impotência perante situações cotidianas que atrapalham desde seus planos e projetos mais simples até os mais complexos.

X

O mais triste de tudo é que embora sejamos iguais em nossas fraquezas, não o somos em nossas possibilidades. Isto é, o fim é o mesmo para todos, mas as condições não são as mesmas para todas as pessoas. É uma grande mentira dizer que todos têm as mesmas chances, as mesmas oportunidades, as mesmas possibilidades. Somos iguais em nossos deveres, mas não em nossos direitos. Temos as mesmas obrigações, mas nem sempre as mesmas opções.

De fato, muitas vezes as chances de êxito, alegria, bem-estar, qualidade de vida de uma pessoa são determinadas pelas circunstâncias em que se encontra. Tais condições são impostas pelo contexto histórico, cultural, social, familiar, econômico do meio em que vive. São estes fatores que desde o nascimento podem determinar muito positiva ou negativamente nas chances de sucesso, realização e felicidade de alguém.

Logo, é uma ironia afirmar que o sol brilha para todos, que basta acreditar que dias melhores virão, que tão somente devemos lutar, nos esforçar...Que a felicidade é só uma questão de escolha...Será? Isto não parece condizente com a realidade. É tão distante da verdade que podemos dizer que nem mesmo os que pregam tal coisa crêem realmente nela...Só a dizem para se sentir bem e dar alento aos demais.

A forma como uma formiga vê a vida não é igual a forma que a vê um elefante. Se no reino animal é assim, há uma cadeia alimentar e uma hierarquia, presas e predadores, no humano não é muito diferente. Cada um terá que viver de acordo com suas condições, sendo estas impostas pela vida ou por outras pessoas.

O que dizer de um cego de nascença? Ele nunca terá o prazer de ver a luz. Um surdo? Mudo? Essas pessoas foram privadas do básico, de sua saúde. Não podemos exigir que elas vejam a vida com bons olhos, se a sorte não lhes foi nem um pouco favorável...O que diremos das crianças exploradas sexualmente? Das que passam fome? Ou das que são escravizadas, não tendo sequer direito a uma infância?

Não se pode dizer que tudo de ruim que acontece nas nossas vidas se deve a uma causa exterior, um fator externo. É evidente que muitos de nossos fracassos, decepções, frustrações, etc, são resultados de escolhas equivocadas, ações e omissões. Se plantamos batatas, não colheremos feijões! Mas é inegável que a vida nem sempre é justa, que o mundo é bastante cruel, tanto com os que merecem e os que não merecem. Às vezes pagamos por crimes que não cometemos, sofremos as consequências de erros de outros.

É lamentável saber que se por um lado todos vamos morrer, teremos o mesmo destino, nem todos terão uma vida feliz e digna, alguns morrerão sem conhecer um segundo de felicidade, tendo tido só desgostos e dissabores.

XI

O ciclo natural da vida faz com que pessoas diferentes façam sempre as mesmas coisas. Como disse o pregador em Eclesiastes: "Não há nada de novo debaixo do sol". As pessoas que viveram há 200 anos atrás tinham as mesmas ambições que temos hoje, e as que viverem daqui a 100 anos farão as mesmas coisas que estamos fazendo agora. As virtudes, os vícios, os sonhos e projetos são os mesmos, só variando o cenário histórico.

E que ciclo natural é este? É simplesmente a luta pela sobrevivência, a afirmação do ego, a perpetuação da espécie...Como em um círculo vicioso, pessoas nascem, vivem e morrem, realizando sempre as mesmas atividades, por vezes cansativas e patéticas...

São poucos os que ousam quebrar este ciclo, rompendo com as "tradições tribais" e assumindo uma nova postura, uma cosmovisão nova, uma personalidade própria...Estes são os "loucos" que nos causam tanta estranheza por serem diferentes em um mundo tão igual.

Somos como peças de uma máquina, criadas para executar sempre a mesma tarefa, estando cientes disso ou não. Na verdade precisamos executá-las, pois se não o fizermos, nos sentiremos mal, notaremos que não estamos funcionando como deveríamos...Ao romper-se o "ciclo natural da vida", sentimentos de frustração, decepção e tristeza virão nos afligir, e um olhar de espanto, descrença e incompreensão será lançado pelos demais...

Cada peça deve funcionar perfeitamente bem neste complexo, enfadonho e repetitivo sistema que nos rege...Nenhum músico deve destoar do tom prejudicando assim toda a orquestra.

Nossas funções nesta vida consistem simplesmente em realizar tarefas básicas como estudar, trabalhar, namorar, casar-se, ter filhos, aposentar-se, e num domingo de sol almoçar com a família tendo a prazerosa sensação de dever cumprido...E assim, cansados porém satisfeitos, nos deitaremos no sofá e enquanto assistimos televisão daremos o último suspiro...

Devemos executar com precisão e mecanicamente nossas tarefas sem sequer nos perguntarmos o porquê as executamos, para quê as executamos, e para quem as executamos.

XII

O rompimento com a harmonia natural do ciclo da vida lança o homem num estado de profunda angústia, frustração, crise de identidade. Saber que deve conquistar aquilo que outros conquistaram é para ele um duro desafio que lhe foi imposto, ou que o mesmo se impôs. Sim, podemos dizer que há imposições e auto-imposições. Existem padrões de beleza, felicidade, comportamento que são tidos como desejáveis, sendo seu oposto o equivalente exato ao "fracasso". Tão odiado, julgado, temido, é como uma peste da qual todos fogem.

Todos nós crescemos tendo como referência tais valores. E tendemos a nos desvalorizar quando não os encontramos em nós mesmos. O que acontece porém é que não percebemos que estes valores são simplesmente conceitos, definições, juízos. O que deveríamos nos perguntar é se teríamos essa mesma visão se não a tivéssemos aprendido antes. Temos que aprender a diferenciar o que é nosso do que é herança.

Uma mulher de 50 anos que não se casou nem teve filhos não é uma fracassada. Ninguém deveria ser obrigado a se casar e ter filhos, mas como é o que todos fazem, vemos com desconfiança àqueles que não fazem isso, seja por escolha ou não. Uma pessoa que não têm amigos não é uma pessoa estranha, pode ser simplesmente alguém que se acostumou a viver só, por não ver sentido no convívio social. Ou talvez tenha razões para preferir uma vida solitária, por não ter boas lembranças de quando quis socializar-se.

O cabelo crespo não é inferior ao liso. Só pensamos assim porque estamos habituados a ver o segundo com mais frequência nos comerciais de shampoo da TV do que o primeiro. Boa parte de nossos conceitos, valores e padrões foram apreendidos de nossos pais, amigos, da sociedade em que fomos criados. E nos custa muito aceitar isto e criar novos valores, uma nova forma de enxergar o mundo.

Mais cedo ou mais tarde teremos que compreender que nosso ritmo não é o mesmo dos outros, que nem sempre conquistaremos tudo o que o outro conquistou e que se o fizermos, não necessariamente será na mesma idade. Precisamos entender que nem todos têm a mesma sorte, e que a vida não deveria ser uma competição de quem faz mais em menos tempo.

XIII

Mesmo tendo em conta que cada um têm seu próprio tempo, que ninguém é igual a ninguém apesar de possuírem objetivos semelhantes, não é fácil evitar a frustração quando ela vem. Sem dúvida é uma reação natural do ser humano, uma resposta inconsciente que damos toda vez que não conseguimos aquilo que almejamos. Então, o que podemos fazer para evitá-la, sendo ela algo tão comum e recorrente? A resposta é simples: tentar desejar o mínimo possível, como bem observaram alguns notáveis pensadores.

É impossível aniquilar por completo a vontade do homem por ser este um ser consciente. Ele têm ciência de suas necessidades, e não estará satisfeito até supri-las.

Mas ele pode evitar desejar coisas que não lhe são realmente necessárias e que almeja simplesmente para competir com os demais. Ele deve dar-se por contente com o que têm, não desejar ter mais para estar contente. Só assim poderá sofrer menos, já que é inevitável sofrer.

XIV

O problema com a teoria anterior é que é difícil aplicá-la na prática. Falar é fácil, fazer não. Isto ocorre porque todos buscam a felicidade como forma de aliviar a existência, ao invés de entender que em um mundo tão incerto e instável é muito improvável que possamos encontrá-la. O desejo de Auto-afirmação leva também a outro problema: a comparação com os demais. Quando alguém vê o outro sendo feliz e desfrutando de uma vida invejável, nasce o complexo de inferioridade. O que é de certa forma compreensível, já que ninguém quer ser apenas expectador da felicidade alheia e mero coadjuvante da própria vida. O anseio por protagonismo é o que nos leva a sofrer.

A única solução para este dilema seria aceitar que querer não é poder. Que nem sempre as portas estarão abertas ou que todos estarão sorrindo para nós. A busca por soluções para problemas demasiado complexos nos quais pouco ou nada pode ser feito, gera desespero. Não deveria ser assim. Às vezes a saída é aceitar que não têm saída.

Quando o homem finalmente entender e se convencer de que as coisas não são como ele gostaria que fossem, que não está no seu alcance mudá-las e que o melhor que pode fazer é "deixar pra lá," boa parte do sofrimento terá sido superado.

O caminho para a felicidade é desistir de ser feliz. Porque tentar estabelecer metas, planos, projetos, condições para ser feliz é justamente a maior causa de nossa infelicidade. Estaremos criando barreiras pro nosso próprio bem-estar e nos frustaremos ao ver que não podemos superá-las.

XV

Por tudo o que temos observado e analisado, é difícil responder ou afirmar sem hesitação qual é o sentido da vida. Ao que tudo indica, parece não haver nenhum. A vida, em si mesma, é totalmente desprovida de propósito e significado. É como ponteiros de um relógio, movimentando-se sempre sem nunca sair do lugar. Apesar de desempenhar um importante papel, tais ponteiros desconhecem por completo a finalidade da função que executam. Assim como nós, que vivemos sem saber o porquê. Fazemos o que fazemos sem saber porque fazemos ou para que fazemos. Executaremos nossa função até que as pilhas se acabem e nossos ponteiros parem exatamente aonde estiverem indicando, de acordo com o tempo contado.

Cada homem é parte de um todo infinito maior do que si, e é também um universo em particular. Ele deixa suas impressões no mundo ao mesmo tempo em que reflete as impressões que o mundo o deixou. Todo animal deixa sua pegada antes de desaparecer, até que esta também desapareça.

Ainda que sejamos diferentes, no fundo somos iguais. Possuímos as mesmas aspirações, embora não tenhamos as mesmas condições. Estamos todos no mesmo barco, com um destino em comum, viajando em classes diferentes.

XVI

O que melhor representa a condição humana é a tragédia. Em toda e qualquer arte, ela é a que mais se aproxima da realidade. Realidade esta que a todo custo queremos negar, mas nem por isso se torna menos real. Toda a angústia humana, finitude, injustiças, amores impossíveis, doenças, guerras, marginalização, estigma, preconceito, exclusão, rejeição, luto, morte, entre outras coisas, são temas expostos em grandes obras de arte que abordaram o "lado triste" da vida ao longo da história.

Usamos roupas para cobrirmos nossas vergonhas, mas não podemos mudar nossa natureza que é a nudez. Se nos esquecessêmos de nossas roupas ou deliberadamente decidissêmos não nos vestir, nos veríamos como realmente somos: nus. As vestimentas são portanto necessárias, ainda que não façam parte de nós.

Devemos pintar com cores irradiantes e vivas o mundo em que vivemos para não percebermos o quão escuro, cinzento ele é. Decoramos nossa casa para dar um aspecto melhor, porém, a simples presença de um belo quadro em uma parede é tão somente um adorno, não muda o fato de que uma parede é naturalmente vazia. Vemos a beleza que pintamos e nos esquecemos que sem os enfeites que colocamos nas coisas, elas são como são. Não queremos ver as coisas como são, porque não nos convém. Não sabemos se estamos prontos para isso, se seremos capazes de continuar vendo beleza quando todo adorno, maquiagem, enfeite, tiver sido retirado.

Precisamos nos sentir grandes para esquecermos de nossa pequenez. Um paciente em estado terminal não pode saber da gravidade de sua doença, para que viva feliz o pouco tempo que têm. Não podemos destruir as ilusões de ninguém, se vemos que estas fazem bem para aquele que as possui. É desumano despertar uma pessoa, tirá-la de seu descanso e inércia se não houver uma boa razão pra isso.

O homem pode negar um fato, mas não invalidá-lo. Pode embelezar aquilo que é feio, mas não torná-lo belo. Pode-se mudar a aparência, mas nunca a essência.

Todos os esforços humanos na procura pela felicidade são tentativas inúteis de não encarar os fatos. São mecanismos de defesa que criamos para não sucumbirmos ante o peso daquilo que está debaixo do nosso nariz. São mentiras que contamos a nós mesmos por não sermos capazes de suportar a verdade.

Quando o homem descobre a si mesmo, se vê refletido como realmente é, não têm pra onde fugir. O que deve fazer é saber como lidar com os fatos, visto que já não pode mais negá-los.

A vida é naturalmente triste. Toda dor, sofrimento, aflição, preocupação, carecem totalmente de uma razão que os justifique. Mas ainda assim tentamos nos convencer de que nada é em vão. Nascer, viver, sofrer e morrer...Qual a lógica disso? Porque temos que passar por tudo isto se um dia iremos sumir? Que proveito terá tanto esforço e empenho quando não estivermos mais aqui? A vida é uma eterna luta por nada.

Queremos crer que a nossa persistência possui um bom motivo, pois não gostamos da idéia de sofrer à toa.

XVII

Definir um sentido para a vida é uma tarefa difícil. Pode haver vários ou mesmo nenhum. Esta é uma questão muito particular, que cada pessoa deverá descobrir por si mesma. O que podemos constatar é a precariedade da condição humana. O ser humano tem que viver com suas limitações, seus medos, lutando para sobreviver em um mundo incerto, sonhando com a felicidade, enquanto resolve problemas e tenta encontrar alívio para suas dores. O que o move a continuar é a esperança. O náufrago sabe que pode não conseguir chegar até à praia, mas prefere morrer tentando.

A solução seria aprender com as plantas e animais. Por não terem consciência, eles não sofrem, pois ignoram sua condição e desconhecem suas limitações. Sendo porém isto impossível ao homem por ser este um ser racional, o que deve ocorrer é uma mudança de mentalidade. Isto é, precisamos aprender a nos dar por satisfeitos com o simples fato de existirmos! Viver sem sonhar nem esperar nada. Apenas viver. Ou existir.

Só assim será possível ao homem enfrentar o absurdo que é posto diante de seus olhos. Quando se tornar indiferente à própria dor e sofrimento (ainda que compassivo com a dos demais), o homem estará em equilíbrio. Mesmo que isso exija forças sobre-humanas para se preciso for, ver com naturalidade e frieza a própria ruína e infortúnio, tal resignação evitará o desespero e a frustração, pois aquele que aprendeu a não desejar não sofrerá com a ausência do que não desejou. Isto é, podemos desfrutar dos breves e transitórios momentos de felicidade que a vida nos proporciona, mas não devemos pautar nossa existência neles. Vivendo em um mundo tão estranho com um futuro incerto, não tendo a certeza de nada nem o controle de tudo, seria uma imprudência apegar-se à esses momentos.

A vida é como um fio que se pode romper a qualquer instante. Pensamos na velhice mas não sabemos se chegaremos até lá. Até mesmo nossa saúde pode debilitar-se, estando nós saudáveis em um dia e enfermos noutro. Nada é absoluto. Sabendo disto, seria sensato tentar aprender o desapego, a apatia e a resignação. Quanto maior o desejo, maior a frustração. Quanto maior a espera, maior a decepção.

O escravo que desistiu de ser livre sofre menos que aquele que ainda almeja a liberdade. Temos que estar preparados para tudo nesta vida, se não quisermos cair em desespero, pois nem sempre poderemos escrever nossa história como gostaríamos. Devemos, se preciso for, estar dispostos a ser um mártir sofredor, alguém cuja vida não é mais que dor e sofrimento, e que ainda assim suporta a tudo heroicamente, cumprindo sua sina, a despeito de sua infelicidade. Mesmo sem almejar nada, ele segue, sabendo que um dia tudo terá fim, ainda que isso pareça demorar.

O homem que aprendeu a viver sem grandes expectativas viverá sem grandes decepções. Fará bem a si.




quarta-feira, 10 de junho de 2020

Divagações

Todas as nossas constatações nos levam à mesma conclusão: nada faz sentido! É inútil tentar encontrar uma lógica para aquilo que não têm. É como andar em círculos, sempre terminaremos no mesmo lugar. Talvez esta seja a sina humana: buscar um significado para aquilo que não possui nenhum. Ele deve empenhar-se nisto, pois admitir o óbvio pode enlouquecê-lo. É tudo vão, ilusório e sem sentido! O mundo em que vivemos, a vida que temos...Qual o propósito de tudo isso? Este é um mundo de incertezas regido por verdades absolutas.

Não se pode questionar, duvidar, senão crer. Não me refiro à fé religiosa somente, mas a tudo o que é tido por belo e louvável à raça humana. Um mundo que entristece e proíbe chorar. Que priva de oportunidades enquanto cobra atitudes. Que cria padrões de comportamento, pensamento e estilo de vida e considera inadequado quem não se enquadra neles. Um mundo que valoriza o "forte", "belo" e "saudável" em detrimento do "fraco", "feio" e "doente". Que nos ensina a ver certas coisas e pessoas como más e repugnantes, quando na verdade tais produtos são simplesmente consequências de falhas nos modelos originais. São objetos defeituosos que por não estarem em harmonia com os demais devem ser descartados o quanto antes.

Aprendemos desde cedo que certos valores são imprescindíveis. E somos instados a ver algumas coisas como estranhas e antinaturais. Mas não percebemos que tudo o que abominamos é muitas vezes resultado das falhas do sórdido, frágil e desumano sistema que nos governa. O sistema que mata é o mesmo que acusa e atira pedras. Não basta levar à loucura: tem que amarrar o "louco", prendê-lo, mantê-lo sob controle. Ele descobriu demais, precisa ser silenciado.

Um dia aprendemos a enxergar além dos muros que nos cercam. Um dia o pássaro preso na gaiola se dá conta de que a mão que sempre o alimentou é a mesma que o privou da liberdade. O que parecia bom era na verdade uma armadilha, mas não teríamos medo nenhum se não soubessêmos disso.

A existência é a fonte de todos os males. O ser têm muitas necessidades, e não é possível ser feliz estando insatisfeito. O círculo vicioso de querer e nem sempre poder é o drama que acompanhará o ser enquanto o mesmo durar. A consciência é o que ilumina mas também mata.
A ignorância nos protege de nós mesmos. Saber muito nem sempre é bom. Quanto mais alto o homem sobe, mais percebe o quão pequeno ele é.

Quem teme perguntar teme ouvir a resposta. Por isso prefere permanecer na ignorância, pois já sabe o que ocorrerá se ousar sair dela. Um animal bem cuidado não terá vontade de fugir de casa, ainda que a porta esteja aberta.
Enganar a si mesmo é viver a maior mentira de todas. É mentir pra quem já sabe a verdade.

A maior ilusão que você pode ter é a de crer que é dono de sua própria vida. Ninguém é! Enquanto fatores externos, circunstâncias, pessoas, normas, regras sociais, convenções, catástrofes, imprevistos, etc, puderem interferir nas suas escolhas, seus planos, projetos, liberdade e até no seu destino, será inútil pensar que é você quem manda.

Existir em um mundo assim, onde não se tem a certeza de nada nem o controle de tudo é uma experiência angustiante. A vida é um estado de constante tensão. No fim das contas, a morte não é um absurdo, mas sim a vida.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Escapismo e fuga

Num dia qualquer ela nasceu
com o pé esquerdo
e ninguém percebeu.
Era noite fria
como jamais se viu,
uma noite de abril.

Ela aprendeu todas as lições
com a sua família.
Sempre soube desde cedo
as sagradas letras,
as santas convicções,
o que fazer pode
e o que não fazer podia.

Ela cresceu bonita e sadia.
Como toda criança
brincava, sonhava, sorria.
Não havia dias maus,
só alegria e esperança,
mesmo na luta, mesmo no caos.

De repente algo mudou.
O azul virou cinza,
o arco-íris ficou sem cor.
Era natal
mas Papai Noel não veio
e presente não deixou.

O que aconteceu,
porque o doce perdeu o sabor?
O que antes a encantava
não mais lhe atraía.
Ela se esforçava
mas não era como antes,
graça seu brinquedo já não tinha,
brincar já não queria.

Agora a menina podia
sem medo ou segredo,
usar o mesmo batom de sua mãe,
e andar de salto alto como sua tia.
Ela já era grande o bastante
pra ser dona do seu nariz,
podia ser o quisesse,
como ela sempre quis.

A euforia durou pouco,
só um instante.
Ser livre não era assim
tão interessante
como de longe parecia.
(Não que ela não soubesse, no fundo já sabia).

Então, ela chorou
quando lembrou
de um tempo tão belo
que para trás ficou.
Ele nunca mais vai voltar,
e pra frente deve caminhar
pois a vida é curta
e não pode parar.

Porém ela sozinha e abandonada ficou.
Desiludida e decepcionada
à tristeza se entregou.
Sentiu-se injustiçada
com a realidade que a cercava,
em como a vida a tratou.

Sorrir muito lhe custava,
a amargura em seu semblante
se podia ver, já se notava.
Era a exteriorização da dor flamejante que por dentro carregava.

Ela sofreu, seu coração morreu.
Pessoas a maltrataram,
dela zombaram,
seu amor desprezaram.
A paixão virou rancor,
o que era sólido derreteu,
o sonho acabou!

Cansada e triste, ela desistiu.
Seu corpo sangrou,
enquanto sua alma sorriu.
Cada corte no pulso,
insano, sem razão,
aliviava um pedaço d' alma,
cicatrizava o coração.

Ela se foi numa tarde fria de inverno.
A paz buscou, sem medo se lançou.
Há quem pense que ela a alcançou,
e quem diga que não (foi pro inferno).
Seja como for, ela partiu,
a bela menina que nasceu
em uma noite fria de abril.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Setembro

Águas caindo,
tempo frio.
Sentimentos indo e vindo
fluindo como um rio.

Tempo parado,
bom de nada fazer.
Um silêncio tão bom,
tudo calado,
folhas ao vento a se mexer...

É um dia triste
ou talvez triste esteja eu!
Pois sinto melancólica
a melodia da chuva
que com suas gotas insistem
em caírem fortes no telhado,
como ataques de um tropel!

É assim que enfim penso na morte,
a inimiga (amiga) do homem...
Por que hei de ter eu medo de tão conveniente sorte?
Estando eu ciente que eu sei
que só me assusta o nome,
que soa forte...

Mas saibam que nada há o que temer,
pois pior do que morrer,
é voltar sem jamais ter ido,
é perder sem ter jogado,
é morrer sem ter vivido!