quinta-feira, 15 de julho de 2021

Das profundezas do tédio

I

Mais uma vez, sou tomado por um espanto indizível. Encontro-me preso a esse corpo, debaixo dessa pele! Estou num universo estranho, que não entendo, não posso entender, nunca entenderei. 

Estar vivo enche-me de pavor! Pensar em tudo o que pode acontecer, todas as possibilidades, todos os males e dores possíveis leva o ser à desesperar-se. Uma criatura que toma consciência demais de sua fragilidade torna-se incapaz de qualquer ato, exceto do exercício da desilusão.

II

Sensações, sensações, disto é feita a vida! Dor, prazer...alegria, tristeza. Sentir e se emocionar, nada mais que isso. De todas as sensações, a melhor é aquela que não se sente! Não era este o estado em que eu me encontrava antes de nascer? Por acaso eu me sentia mal por isso? Agora, estando vivo sinto muitas coisas ruins que não gosto e nem sempre posso experimentar as sensações boas que quero...Melhor seria não ter nascido, não existir e não sentir nada.

III

Queria poder me livrar dos meus instintos, negá-los ou domá-los por completo. Queria poder romper as limitações impostas pela natureza, driblar a fome, a sede, o sono, o cansaço, o desejo sexual. As funções biológicas ocupam boa parte da vida, ou devo dizer que a própria vida se resume a elas? Não sei ao certo. 

Desejos se confundem com necessidades ao ponto de não ser possível diferenciá-los. Sou um corpo com consciência ou sou uma consciência presa em um corpo e miseravelmente dominada por ele?

IV

Livre arbítrio? Liberdade? Num mundo como esse, numa realidade como essa tais conceitos me parecem uma piada. Eu não faço o que quero, e nem tudo o que quero eu posso fazer. 

Meus desejos chocam-se com a realidade, são limitados pelas circunstâncias, dependem das  possibilidades e nada disso está no meu poder. Embora eu dependa de tudo e todos, nada depende só de mim. Muitas coisas precisam acontecer para que os meus planos dêem certo, mas se for para dar errado, nenhum esforço meu poderá ser suficiente para evitar...Livre eu seria se pudesse fazer tudo o que quisesse, livre-arbítrio eu teria se conseguisse não desejar o que desejo. Se não sou capaz disso, então sou apenas um escravo, da vida, da sociedade, de mim mesmo.

V

Não estou feliz na minha condição humana. Me seria bom se pudesse abandoná-la e ser qualquer outra coisa. O homem é um animal racional, um animal que sofre com o peso da sua racionalidade e também um ser racional que tem de satisfazer a sua animalidade. Tal condição me parece trágica! 

Ou é somente animal ou racional - mas o homem é ambos e tem que adequar-se à esta condição. Não ouso dizer que sejamos aberrações da natureza, mas também vejo como bastante exagerada a afirmação de que somos a "coroa da criação"... A condição de animal-racional muito me incomoda, e é de fato uma combinação perigosa- os suicidas que o digam.

VI

Ter que viver com a sombra do passado e a incerteza do futuro na mente é algo que exige "jogo de cintura". Eu sou o único que sabe tudo a meu respeito e tenho que carregar o peso de tamanho conhecimento. Posso fugir de tudo e todos, menos de mim mesmo. Posso enganar a todos, menos eu mesmo. Isto é assustador! Mesmo que eu pudesse me desvencilhar dos outros, serei sempre assolado pela minha companhia! 

Em momentos de angústia, a mente se torna uma grande inimiga, evocando lembranças tristes, bombardeando pensamentos negativos. Ela se volta contra o seu próprio dono, acusando-o e fazendo-o hesitar. Como disse Emil Cioran que ninguém poderia curá-lo de "um horror mais velho do que a minha memória".

VII

As explicações científicas feitas sobre o homem parecem mostrar que este nada mais é do que um animal racional. Tudo é cérebro, tudo é biológico, tudo é físico. Se for realmente assim, isto explica muita coisa - e em nada rebaixa o homem ou tira a sua grandeza, como insinuam alguns religiosos. Isto nos ajudaria a entender o porquê de tantas doenças, transtornos serem hereditários, o porquê de alterações no cérebro implicar em mudanças na personalidade, no comportamento, etc. 

Tal conhecimento é magnífico e ao mesmo tempo assustador: Se eu sou apenas um ser físico, um animal dotado de razão, isto significa que nada ou praticamente nada do meu próprio funcionamento está no meu controle! 

As peças do meu "maquinário" precisam estar em ordem e devidamente ajustadas para que eu possa "funcionar" bem em todas as áreas. Qualquer desordem, por menor que seja, pode me afetar e muito...Esta condição é de fato incômoda e a consciência dela perturbadora.

VIII

A sexualidade têm no homem a mais estranha forma de expressão. Isto é, sendo um ser sexual, o ser humano tem de comportar-se como se não o fosse. Cobre-se de roupas, esconde o seu corpo, reveste-se de pudor. Porém, o desejo sexual está nele, faz parte dele, é da natureza humana. Somos, possivelmente a única espécie que reprime seus instintos ou que precisa reprimí-los para viver em sociedade. Coberto por roupas somos doutores, líderes, generais. Nus, somos apenas uma criatura como qualquer outra. 

Talvez os seres humanos sejam os animais que mais dificuldades tenham para conseguir ter relações sexuais. Há todo um ritual, um processo, um esforço para conseguir isso. E quando o desejo é alcançado, este é praticado entre quatro paredes e extremo sigilo. O que outros animais fazem ao ar livre, à vista de todos, os humanos fazem secretamente e com cuidadosa privacidade. 

Desnecessário dizer que somos capazes das maiores aberrações e práticas sexuais, feitas conscientemente. Estupro, incesto, bestialidade, pedofilia, necrofilia, homossexualismo, entre tantas coisas são próprias da espécie humana. 

Provavelmente o sexo seja o que mais aproxima o homem dos outros animais e alcança na raça humana os mais elevados graus da depravação.

IX

Dependemos de tudo e de todos. Por mais independente que sejamos, nunca seremos auto-suficientes. Não há nenhuma área de nossas vidas que possa ser preenchida apenas por nós mesmos.

Vida sentimental, social, profissional, familiar, não podemos nos realizarmos em nenhuma delas sem a ajuda de outros. Esta dependência que um ser humano têm de outros seres humanos para tudo o que faz é uma das maiores desgraças humanas, senão a maior de todas.

X

Uma vida em estado contemplativo é certamente a melhor de todas. Basta ver a quietude das plantas, a tranquilidade dos animais e compará-las com o estresse, a angústia, a inquietação do homem. Ele não tem como escapar de suas responsabilidades, seus deveres, seus compromissos, suas obrigações. É lançado ao mundo e tem que viver uma vida já programada, mesmo sem tê-la pedido. É trazido à mesa e precisa jogar. Não pode rebelar-se contra a sua própria condição, ainda que tenha plena consciência desta e não concorde com ela. 

Se ele experimenta não pagar as contas, ficará sem energia. Se recusa-se a cuidar da sua saúde, adoecerá, ou as doenças que já têm se agravarão. Se resolve não sair de casa, perderá o contato com o mundo exterior. Se decide não fazer mais compras, a despensa se esvaziará. Se decide não trabalhar, ficará sem dinheiro e não terá o que comer. Se decide não tomar água, morrerá de sede, se decide não comer, morrerá de fome. Se pára de tomar banho, irá feder...

O homem é chamado à ação constantemente, não pode se dar ao luxo de cruzar os braços e não fazer nada sem sofrer alguma consequência.

XI

Se as nossas atitudes, costumes, escolhas e sobretudo o nosso comportamento são determinadas pela genética, o ambiente, a educação, a cultura entre outras coisas, como saber até que ponto eu sou eu mesmo e não fruto da soma desses fatores? 

Onde fica a minha originalidade nisso tudo, se eu herdei características de meus parentes, fui influenciado (positiva ou negativamente) pelo ambiente, fui moldado pelo meio? Quanto de mim é realmente meu?

Provavelmente, muito pouco, considerando que eu não formei a mim mesmo, a personalidade, a aparência, as aptidões, as fraquezas que tenho já vieram assim, não me restando outra opção senão aceitá-las...

XII

Quando me lembro que não pude escolher nada acerca das condições/circunstâncias do meu nascimento, me encho de alívio e também de pavor: Do mesmo modo que eu poderia ser um príncipe, herdeiro de um trono e regado de luxos, poderia ser um negro escravizado no Brasil império ou um judeu nos campos de concentração durante a segunda guerra mundial! 

Eu poderia ter nascido em condições infinitamente diferentes das que nasci, e isso mudaria por completo a minha história, para a melhor ou pior. É impressionante pensar nessas possibilidades que podiam ter me atingido, das quais não conseguiria escapar.

XIII

Não é necessário usar drogas para se tornar um dependente. Até mesmo uma pessoa que não faz uso de entorpecentes pode vir a ser escrava de algo ou alguém, seja de um sentimento ou uma sensação. 

Tudo o que é bom vicia, gera dependência, nos faz querer mais. Por exemplo, uma pessoa que amamos e a quem entregamos o nosso coração, fazemos dela a nossa vida, estamos na mão dela sem que ela saiba e nós percebamos. Isso explica o porquê de muitos crimes passionais de maridos/esposas que não aceitam o fim do relacionamento. 

Tudo o que nos dá prazer e nos faz sentir uma insaciável vontade de experimentar mais, é um vício, seja ele nocivo à saúde ou não. Ledo engano achar que os dependentes químicos são os únicos que dependem de algo para se sentir bem! Todos têm uma dependência (afetiva, social, financeira, etc) de algum tipo sem que o saiba.

XIV

Vivemos sempre a realidade do momento presente, que não é a mesma do dia de ontem e não será a mesma de amanhã. Estamos em um fluxo contínuo de mudanças que acontecem sem que possamos evitar.

A minha condição atual não é a mesma de dez anos atrás, e possivelmente - para bem ou para mal - não será a mesma daqui a dez anos. Todo presente vira passado, todo passado lembrança. Mudam-se as pessoas, os cenários, os hábitos, as tarefas, os problemas, as preocupações, os direitos, os deveres...

Se não fosse pelo fato de carregarmos o mesmo nome, termos a idade que nos mostra o nosso RG, mantermos os laços familiares e tudo o que nos vincula às nossas raízes, seria difícil dizer que ainda somos as mesmas pessoas em meio a esse turbilhão de alterações constantes.

XV

A vida é bela enquanto tudo vai bem. Enquanto tudo dá certo, enquanto todas as coisas estão em ordem, na mais perfeita harmonia e tudo está como deve ser. Sim, quando não temos com o que nos preocupar, do que nos queixarmos, ela é leve, é bela, é boa! 

Mas quando tudo vira de cabeça para baixo, as coisas mudam de repente, perdemos um ente querido, somos demitidos, somos acometidos por uma doença, sofremos alguma perda ou privação de qualquer natureza, enfim, quando a calamidade nos atinge, bem, nesses momentos é difícil continuar tendo a mesma visão romântica da existência. 

Somente quando a vida mostra a sua verdadeira face - que é essencialmente maligna - é que nos damos conta da gravidade que foi ter nascido e do horror de estar vivo.

XVI 

A infância é o mais belo acidente da vida. Nascemos para ser adultos! Chega a ser difícil acreditar que um dia estivemos livres das preocupações atuais, que víamos o mundo com bons olhos, que tudo era mágico e belo! Quando um adulto se lembra de que um dia já foi criança, sente-se como Adão fora do jardim do Éden, um desterrado. Se há algo que melhor se aproxima do conceito de felicidade plena, esta é sem dúvida a infância. 

Vendo as crianças que brincam felizes penso: Ah, pobre menino, pobre menina! Esta alegria não vai durar para sempre. Esse sorriso que agora carregas, há de ser desfeito pela dureza da vida e a maldade do mundo. Tu que hoje ris, amanhã chorarás. Pensarás: porque eu tinha tanta pressa em crescer? Lembrarás com saudade de tudo o que vives, saudades sentirás.

XVII

Se a intenção de alguém estando nesse mundo for "aproveitar a vida" ao máximo, sinto dizer-lhe que isto não é possível. 

Se fôssemos contar o tempo que gastamos com nossos compromissos, responsabilidades, trabalho e obrigações, e comparar com o que sobra livre para o lazer, a diversão, os prazeres em geral, veremos que há uma enorme desigualdade entre eles, e que na maior parte do tempo estamos empenhados em resolver nossos problemas e satisfazer nossas necessidades mais do que em qualquer outra coisa.

XVIII

Esse é um mundo de incompatibilidades, onde as coisas não são na prática como deveriam ser na teoria. A realidade é apenas uma e ela não se modifica para atender as necessidades de quem quer que seja. Cabe a cada um adequar-se à ela, mesmo que não tenha recursos para tal. 

Um mundo onde (teóricamente) todos devem trabalhar, mas muitos não conseguem emprego. Onde todos deviam ter uma casa e alguns não têm. Todos deviam ter saúde, mas muitos já nascem extremamente doentes. Onde todos deviam ser amados, acolhidos e aceitos como são, o que não acontece. Onde todos deviam ter acesso aos mesmos recursos, ter os mesmos direitos e privilégios, mas não é assim. 

Onde todos deveriam conseguir alcançar os seus objetivos e satisfazer as suas necessidades, o que para muitos não ocorre. É um mundo onde existem muitos que não conseguem o mínimo para ter uma vida decente, digna, faltando-lhes o básico. Um mundo de incompatibilidades e desigualdades, onde, para muitos as coisas não são como deveriam ser.

XIX

Só percebemos o quão jovem uma pessoa morreu quando alcançamos a idade em que ela se foi. Aí podemos ver se ela viveu muito ou pouco...Temos a estranha sensação de poder dizer: "Fulano não passou desta idade." 

Sabemos que ela não viveu nada mais depois disso. Mas enquanto para alguns a vida estava acabando, para outros na mesma idade ela está apenas começando, com a pessoa realizando os seus sonhos e vivendo coisas que até então não tinha vivido. "Enquanto há vida, há esperança", diz o ditado.

XX

Não sei se a longevidade é boa ou ruim. Talvez seja boa, talvez seja ruim, isso dependerá muito da pessoa em questão. Isto é, há pessoas cujas vidas são tão tristes, tão deploráveis, que viver muito só seria prolongar o sofrimento por mais tempo. Não que a vida delas seja medíocre (a de todos é), mas para alguns a vulgaridade da vida é de certa forma mais suportável. Mas para aqueles que vivem afogados em problemas, preocupações, que são assolados por doenças, devastados por acontecimentos que fogem do seu controle, que passam a vida como Jó sem contudo terem o seu cativeiro virado, para estes a dor é permanente e viver nem sempre é algo tolerável. Exigir que gostem de viver, que cheguem aos cem anos com um sorriso no rosto é pedir muito...

Aqui não se trata de uma defesa do auto-extermínio, senão de uma questão de honestidade. A longevidade pode ser boa para aqueles que têm condições de aproveitar a vida, ou melhor dizendo, dispõe de recursos para vivê-la com dignidade. Para esses viver muito pode ser um privilégio, para outros, que não se encontram em um estado favorável, viver muito já seria um castigo...

No entanto, penso que viver muito não é viver bem. De que adianta viver muitos anos se for para ser infeliz em quase todos eles? Morrer nesse caso seria um alívio. O importante não é a quantidade de anos que se vive, mas a intensidade com que são vividos. A longevidade não pode garantir a felicidade de ninguém, mas os longevos podem se gabar de terem visto muita coisa. Em termos de experiência, evidentemente eles estão em vantagem. 

Contudo, uma pessoa que morre na infância é mais feliz do que uma que morre em avançada idade cheia de dores. Um viveu muito e não lhe serviu para nada, outro viveu pouquíssimo mas foi feliz durante os poucos anos que viveu...

XXI

Pensar na morte é pensar em extremos. Todas as teorias apresentadas sobre o que acontece (ou não) após a morte são radicais. Imortalidade da alma? Sono eterno? Uma vida eterna num céu/inferno ou um estado de inexistência perpétuo? De todas as maneiras que pensarmos, estaremos lidando com idéias extremas. O que temos certeza é de que um dia morreremos, apenas isso. A morte é uma incógnita para nós. 

Há pessoas que não suportam a simples idéia de deixar de existir, como se isto fosse a maior de todas as afrontas que podem acontecer à um ser humano. Em contrapartida, outros abominam a possibilidade de viver eternamente através de uma alma imortal, existir para sempre contra a sua vontade...Ambos os medos são compreensíveis, visto que se trata de algo que não sabemos e cuja verdade não poderemos mudar. Isto é, não importa a crença que tivermos a respeito, "o que tiver de ser, será." 

Mas talvez pior do que as angústias que se têm quando pensamos no que virá ou não após a morte, são os medos que temos sobre quando ou como passaremos por ela! O medo de morrer jovem, morrer de forma violenta/dolorosa, sem termos realizado nossos sonhos, de sermos surpreendidos pela morte em um momento de felicidade...São temores igualmente naturais, considerando a realidade de nossa finitude.

XXII

Só saberemos o que uma pessoa será quando ela se tornar adulta. Não me refiro necessariamente à questões como profissão (embora esta também seja relevante), senão a caráter, personalidade, comportamento, crenças e opiniões. Enquanto é criança, ninguém (nem mesmo ela) sabe com precisão o que se tornará. 

Mesmo que os pais tenham planos, projetos, sonhos para os seus filhos, foge-lhes do controle fazer com que eles sejam o que se espera deles. Isto é, não é de se estranhar que pais cristãos tenham filhos ateus, cidadãos de bem gerem filhos criminosos, pais libertinos tenham filhos religiosos, ou que divergem de alguma tradição familiar (como seguir a mesma carreira dos antepassados). É também na idade adulta que se manifestam as neuroses, psicoses, transtornos mentais, fobias...Mas talvez o choque nunca seja maior do que quando o filho(a) estando em um estado de desespero (ou não) decide não mais viver, fazendo o que ninguém imaginava que pudesse fazer. Os suicidas criam asas, voam alto até demais...

Mas não só eles, os filhos em geral assumem uma personalidade própria -para bem ou para mal. Só quando se tornam adultos é que começam a trilhar os seus próprios caminhos, muitas vezes surpreendendo a todos com as escolhas feitas, inclusive a si mesmos.

XXIII

Não é difícil entender porquê uma pessoa se suicida. Qualquer um que tenha estado em uma situação difícil, se encontrado em condições desfavoráveis, encurralado por circunstâncias adversas, terá sentido o desejo de desistir. 

Provavelmente, nem o próprio suicida imaginava ser capaz de fazer tal coisa. No entanto, não conseguindo reagir positivamente aos empecilhos que se lhe opuseram, sentindo-se só, perdido e esmagado por forças que fogiam do seu controle, acabou sucumbindo ao desejo de pôr fim em tudo. 

O suicida não se mata para ferir ninguém, senão para curar-se de uma dor que de outra maneira não acredita ser possível curar. A morte é para ele a libertação de uma vida que é incapaz de viver, que muito lhe pesa, lhe faz sofrer. A decisão pode surgir repentinamente, ou ser trabalhada com cuidado, não há uma regra.

O suicida não deve ser condenado, julgado como o pior dos seres, ele é apenas alguém que decidiu não mais sofrer num mundo onde isto é comum e inevitável.

XXIV

As lembranças são somente espectros, imagens borradas do nosso passado. Quando recordamos um fato, sabemos que ele aconteceu, que estávamos lá e que é algo que tem a ver conosco. Porém, não podemos resgatar a sensação que experimentamos, o sentimento que tínhamos, não podemos revivê-los, é como se estivéssemos vendo um filme da nossa própria vida - como expectadores. 

O tempo apaga tudo, ou lança quase tudo no esquecimento. Ainda que uma música, um filme, uma fotografia, um vídeo, um objeto, um lugar possam transportar-nos ao passado, ele segue desprovido de cor, de vida, de sentimento. Todos os bons momentos se tornam apenas vagas lembranças, que tendem a ficar cada vez mais inexatas e distantes com o passar do tempo.

XXV

Se considerarmos tudo o que vivemos como sendo nada mais do que simples sensações, sentimentos, experiências, tiraremos o peso da imposição da felicidade, ou, da obsessão pelo bem-estar. Tudo é natural, tudo faz parte da vida, tudo é válido! 

A insistência em querer desfrutar somente de coisas agradáveis nos faz esquecer de que a vida não se limita a elas. E, principalmente, nos traz angústia, frustração, decepção. 

Só quando aceitamos que não existe um padrão para a vida, que sentimentos negativos são tão normais quanto positivos, que sensações ruins são tão naturais quanto boas, então a dor é suportada, a tristeza deixa de ser mal vista, as privações não nos incomodam como antes, a necessidade de aprovação e reconhecimento de terceiros desaparece! 

Por quê se preocupar com a qualidade das experiências se elas irão se apagar de uma só vez no duro golpe da morte?

XXVI

A vida não precisa de um sentido para ser vivida. Ela já é naturalmente absurda. Não são os grandes sentidos os que ajudam a viver, mas os pequenos. 

Um potencial suicida deve adiar a sua morte sempre que possível, tentando cumprir pela última vez pequenas tarefas que o prendam à essa vida: ver um filme inédito, terminar a leitura de um livro, assistir o final de uma novela, o jogo do seu time do coração, ouvir o novo álbum do seu cantor/banda favorita... Assim ele deve fazer, inventar diariamente um pretexto para continuar vivo, até que a morte chegue e o leve de uma vez.

XXVII

E de repente eu me vi só, perdido num mundo em que eu sempre estive, mas que até pouco tempo atrás eu não havia percebido como de fato era. Me pus a refletir, a analisar e medir tudo o que faço, vejo, o que diariamente acontece. Atravessei as barreiras do comum, desnudei as fronteiras da existência com o pensamento. Tudo me cansou, nenhuma ilusão restou, só uma terrível lucidez, lucidez nascida das profundezas do tédio.







Nenhum comentário:

Postar um comentário